Por que assisto isto?
Abandonado pela família em férias de verão, carente de companhia, este pobre escriba procurou alternativas ao combater a terrível solidão, nesta Sumpa desvairada. Almoçou com amigos em um sábado ensolarado, foi a um tal museu de Zoologia da USP neste domingo (não vale a pena, é mambembe), e que não fica na Cidade Universitária por conseqüência perdeu-se no bairro do Ipiranga; e ainda foi procurar a farmácia de um velho amigo, para ver como andava, lá pelo Tucuruvi, mas rodou e não achou mais o local, está sem a necessária noção da orientação. Alzheimer, maybe?
Sem ímpetos para cozinhar, sozinho é pouco divertido, entreguei-me ao mais vil apelo capitalista e, sem sair do carro, passei no sempre imundo McDonald´s da avenida Angélica; e me fartei com todo o colesterol possível, incluindo o Sundae (qual será a origem do nome, ao invés de sunday?) de caramelo. Prostado em frente à tevê, assistindo com dedos gordurosos os escolhidos filmes de verão.
Que me levaram a pensar, primeiramente em minha opção cinematográfica e, após, nas pessoas em que se basearam.
Comecei com o tal Salvador Puig, filme espanhol com o excelente ator alemão Daniel Brühl, em seu espanhol perfeito, deve ter morado ou crescido por lá, não é dublagem. Trata-se dos momentos finais na vida do anarquista e revolucionário barcelonês, a combater a ditadura franquista em meados dos anos 1970, com as intervenções correntes, quase românticas, de amor, assaltos, lealdade e combate ao aparelho repressivo. Com excelente final. Filme cativante, recomendo muito. Jamais, pura falha de cultura (ou censura) havia ouvido sequer falar de Salvador Puig, entretanto quando ocorreram os eventos por aqui a repressão era canina e com toda certeza o assunto jamais veio à tona.
O machismo espanhol aliado ao militarismo, com suas palhetas ridículas em uniforme bobos, os indefectíveis óculos de sol e a preocupação exagerada com os “inimigos” internos e subversivos, com certeza foi bom modelo para seus “counterparts” latinoamericanos. Quase moda, diria...
Pelo outro lado da belicidade, com a batatinha frita à mão, a grande, entreguei-me ao magistral Che 2 com Benício del Toro, soberbo no papel, perfeito. Obra impecável do Steven Soderbergh, cativante do começo ao fim, incluindo a cena talvez possível do fuzilamento de Guevara por um voluntário soldado boliviano, a aparentemente vingar a morte de um amigo, abatido pela guerilha brancaleônica do Comandante, que queria da Bolívia fazer sua Cuba, onde apesar do prestígio e adquirida cidadania, permanecia estrangeiro.
E optou em ser o agente exportador de la Revolución. Aqui entre nós: o cara gostava era de quebra-pau, estranho para um médico e seu juramento hipocrático. Talvez o dele fosse apenas um juramento hipócrita... Lembrei em sua biografia ter lido que “nada sentiu quando em um dos primeiros ataques em Cuba contra os soldados de Batista, pegos de surpresa, matou um deles”.
Todavia ficou o prestígio de vencedor da revolução pela luta armada, a idéia de latinizar, um tanto quanto Bolívar, a ideologia e sobraram-lhe os tiros de um recruta, que se emputeceu pelo amigo morto. A mescla entre a grande causa e o cotidiano banal é o dilema dos que procuram por gestos extremos e violentos alcançar algum upgrade na vida, utilizando este horrível neologismo.
Já no sundae, de caramelo com amendoim picado por cima e o frio entrando pelas narinas, mais adiante deliciei-me com o Leão do Deserto, Anthony Quinn no papel de Omar Mukthar, um líder líbio, professor e guerillheiro nas horas vagas, por mais de 20 anos combateu as tentativas colonizadoras da Itália, esta se dizendo com direitos, pois desde César já estariam por lá. Tratavam os líbios como animais, isto nos anos 1930 já com o não muito inteligente fã de Hitler, Il Duce, à frente. O papel do governador e repressor dos líbios, General Grazziani, é interpretado por Oliver Reed, mas um pouco, digamos, exagerado. Inglês imitando italiano não tem apelo...
O filme é de 1981, não rodou por aqui pelo que me lembro (ainda andávamos em tempos plúmbeos, por esta bandas) e curiosamente foi censurado na Itália, por “ofensas às forças armadas”, somente liberado em 2009 para um canal de TV de lá.
De fato não mostra os colonizadores pelo seu lado mais nobre, com campos de concentração para os pobres bérberes e beduínos e a eliminação de guerilheiros feridos com tiros na nuca ou enforcando quem nos campos recebesse ajuda externa. O fascismo e o nazismo cultuavam estas primitivas doutrinas de ocupação, vitória e grandeza.
Deu no que deu.
Mas não respondi, ainda, a pergunta acima. Por que assisto isto?
Todos nós temos em algum momento da vida a indelével compulsão em subverter a odiosa autoridade ou autoritarismo. Alguns sempre me questionam o porque, em meu caso, assistir a filmes de guerra, sobre heroísmos, já que por outra ponta mostro inegável desprezo por uniformizados em armas.
Nos anos onde ocorreu a trágica epopéia de Salvador Puig em sua querida Barcelona, era a época de meu alistamento militar, que procurei fazer junto a força aérea (sempre em minúsculas). Em fila na calçada à frente do quartel da quarta zona aérea (zona é engraçado...) lá no Cambuci-Ipiranga, leve chuva, aguardávamos para receber o papelório e jurar bobagens. Liberada nossa entrada, em fila, apagamos à ordem de um soldado os cigarros e umas dez pitucas voaram para a sarjeta. Onde se empoçava água. Molhados seguimos até a portaria quando um p.a. (polícia da aeronáutica) olhando para todos, “escolheu” a mim para eu limpar a “sujeira” que havíamos feito. Repliquei que aquilo não era correto, havia centenas de pitucas na calçada, na sarjeta e na rua e não ser proibido por lá fumar, estávamos fora do quartel.
Levantou a metralhadora e de seu olhos jovens (talvez fosse um ou dois anos mais velho que eu em meus 17), o enfardado com seu capacete de letras grandes, disse-me algo como “branquelinho, faz o que eu digo, pois quem manda por aqui somos nós, dentro ou fora do quartel. E se não obedecer ocorre um acidente com a minha metralhadora e você some...”.
Foi a maior humilhação por que passei na vida. Com o cano da metranca apontado, peguei umas dez ou doze pitucas na água imunda da sarjeta e após satisfeito o milico, mostrou-me onde jogar: do outro lado da rua, também na sarjeta.. Vitória do despreparo, é mais comum que imaginamos.
Ninguém dos outros alistandos riu, o silêncio era total. Entramos no quartel em fila indiana, recebemos o papel, havia ainda uma cerimônia idiota de juramento a um pano colorido e voltei para casa. Molhado, humilhado e se naquele momento El Che me recrutasse, seria seu cabo número um contra los regulares. Deve ser o melhor momento para recrutar alguém com fervor...
Em casa contei ao meu pai o ocorrido e este, que passara por pior, apenas disse: foi seu batismo, meu filho. Ex-militar tinha opiniões divididas.
Quanto a mim, quando vejo a exaltação ao belicismo e uso de armas por ideologia, nesses filmes, novos e antigos, continuo com reservas quanto a uniformizados e sempre imaginando como poderiam resolver assuntos que afligiam a todos sem violência.
Gandhi sabia...