Hermó

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro & Mello

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Artigo nº 86 - 18/11/2022

Hi, esqueci!

Talvez alguém ainda recorda: havia sempre determinado programa cultural no ginásio, organizado pelo professor da nossa inculta e bela. Às vezes sujeito com cara de mordomo de vampiro-rei, me perdoem a maldade.

Seguramente naquelas épocas os cabelos negros penteados para trás, com boas doses de Brylcrem. A pele carcomida pela acne, os olhos soturnos.

Esticava os esses até quase a ruptura, reação do mestre ao “italianismo”, essa forma ítalo-paulistana de comer os plurais, seguida Brasil afora.

Apelido do homem era “Casca”, maldosa cascavel personagem de desenho animado, sibilava seus diálogos com algum menino-lobo da floresta, filme em voga na época.

O programa por ele organizado: a ida ao teatro. A peça: O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente.

Eram todas as quartas séries do ginásio, talvez algo entre 100 e 120 alunos, disputando a maior chatice pubescente: ser púbere. Arre!

O teatro (seria o Teatro Brasileiro de Comédias, na Rua Major Diogo?) não lembro bem; era no Bairro da Bexiga (alguns dizem “do Bexiga”), com certeza. Fomos nos ônibus que serviam à escola, do pai de um dos colegas de classe. Zoada danada....

Todos devidamente instalados no teatrão, a seção seria matutina e só para a turma daquela escola.

Cenário escuro, simples canoa pelo palco; atraso, sinal de sino ou campainha e eis que assisto minha segunda peça de teatro na vida, a primeira maravilhosa encenação de Meu Amigo Hardy, com vovó em férias involuntárias na Alemanha.

O linguajar complexo na peça do TBC se arrastava pesadamente e o molecal público tentava compreender o tema.

Impacientes, nós jovens ficamos com a impressão a aculturação referente ao nosso Shakespeare portuga deveria ser um tanto mais dinâmica.

No entanto, por essas tristes questões do destino, a atriz principal, em um dos pontos da trama, perdeu-se. E pelo visto não havia “soffleuse”, quem “assopra” o texto para sanar estes tropeços.

Pimba!

Parou tudo, os demais atores pareciam atolados em seus desesperos. E de quem se esperava a continuidade nada vinha. Parecia o planeta havia cessado seu giro.

Algum destes jovenzinhos espivetados, percebendo havia algo dado errado, pela longa interrupção, detonou certo valente:

- “Hi-esqueceu!”.

A atriz enfureceu-se, dirigiu impropérios aos adolescentes, chamou-nos de mimadões impacientes e isto poder acontecer com qualquer a se dispor às artes cênicas ao vivo... Nem quis continuar, ficou chateada, dizia não haver clima. Foi embora, em seus mantos negros esvoaçantes.

Ônibus, volta para a escola.

Coito interrompido, mas não recordo alguém dignou-se depois ler a peça, para saber como terminaria.

Entre eles, sem grande orgulho, mas também sem tanto envergonhar-me, eu.

Trinta e tantos anos após vejo lindamente editado pela Cosac Naify o Auto da sibila Cassandra (2007). Fiquei curioso e lá fui perscrutar pelo troço...

Confesso tenho certa dificuldade em ler peças de teatro ou escripites de filmes, escorrego na seqüência, me perco; esqueço o nome dos personagens.

Ó lástima, similar à dislexia incorrigível...

De qualquer sorte, me aventurei pela sibila Cassandra. É de certo lirismo, Gil Vicente inegavelmente dedicado e inteligente autor de 42 autos, representados entre 1502 e 1536. As questões têm terrível fundo religioso, esse que ainda norteia de alguma forma nosso modo de viver luso-brasileiro, mormente lá pela “matriz” na Península Ibérica, nas maneiras e doutrinas familiares. Dá o Gil Vicente à personagem forma chistosa no trato, esta a repudiar insinuações dever casar, citando argumentos em versos. Nos exatos 793 do auto, em seus primeiros 427 não revela aquilo a motiva à rejeição.

Mas a finalização, forte doutrina católica, imagina-se, e compreensível receio dos tribunais de inquisição, leva ao happy end de arrependimento: a moça decide casar. E enaltece os lugares comuns da prática religiosa e religiosidade de hoje e então.

O ensaio acompanhando a obra, do crítico Leo Spitzer, é excelente, porém requer muita destreza na apreciação; isto me foge. Reli; aí foi, mais ou menos. Mas são tantas citações de fato se torna assunto para bons entendidos, dentre os quais posso me excluir, tristemente. Talvez transferindo culpa, em parte, por minha menor apreciação de Gil Vicente, à atriz nos fez perder a peça...

Talvez estivesse num péssimo dia a moça.

Talvez...

Acontece, somos assim.

Edição incomparavelmente primorosa. Para apreciadores, um trabalho de apresentação excelente e uma das mais belas capas de 2007.

Comentários

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hermo@hermo - 24/04/2008 (16:04)

Verguenza... na verdade ela só se arrepende da bobagem de querer se casar com o Messias. Mas é como casar, o arrependimento é igual.

Hermogenes - 24/04/2008 (07:04)

Decidir casar e casar é diferente... quase como achar bom ir para a Índia e ir para a Índia. Coisa de portugueses (Vasco da Gama foi até a Índia... Dom Henrique, o navegante, jamais foi.)

julia - 23/04/2008 (16:04)

mas a Cassandra não casa no final!

Hermógenes - 23/04/2008 (11:04)

Não tanto. A peça que vi com a avó era "Meu amigo Harvey", e não "Hardy"... 1967, no teatro municipal de Braunschweig. Uma comédia divertida. Até virou filme, veja em Harvey...

denise mendonça teixeira - 23/04/2008 (11:04)

Memória, memória.

Hermó - 22/04/2008 (17:04)

Nota 1: 4 séries de "antão" são as tais oitavas de hoje.