Hermó

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro & Mello

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Artigo nº 51 - 18/11/2022

Sociedade e medo

Leio curiosa entrevista com Zygmunt Bauman (caderno Aliás, 27.01.2008 do Estado). Um apanhado conciso e preciso do reger da sociedade: o medo como ordenamento do cidadão. O poder do estado, sobre nós, embasado na ameaça; e na violência, oficial. Nada mais truculento que o estado, desde haver tribos, assim sabemos.

Sociólogo, professor emérito das Universidades de Leeds e Varsóvia, autor do livro “Medo Líquido” (Editora Zahar, 2007/2008), Bauman em observações de inegável acribia sintetiza o atual modo de convivência entre nós humanos, como unicamente lastreado no medo fomentado pelo estado.

Diz ele: “Vivemos agora - como já vivíamos antes desse colapso de bolsa de valores, do 11 de setembro ou do Katrina - em estado de medo permanente e incurável. Medos emanam de absolutamente qualquer coisa: falta de estabilidade no trabalho, constante mudança nas regras do jogo da vida, fragilidade nas parcerias, falta de reconhecimento social, ameaças de epidemias, comidas cancerígenas, possibilidade de ser excluído do mercado, ameaças à segurança pessoal nas ruas.”

Nas antigas extintas sociedades comunistas como a Alemanha Oriental, o medo da perda do emprego não existia, era garantia dada pelo estado. Os estados hoje não o fazem mais, era custoso demais e pouco eficiente. O indivíduo seguro de sua posição e estabilidade convergia pela vereda do menor esforço. Como por aqui o funcionário público. Mesmo sendo sociedade segura por este aspecto, o partido único e governista daquele país aterrorizava os cidadãos.

Proibição de viagens ao exterior, controle das atividades suspeitas através do sistema policial, proibição de sintonizar canais de TV da dita Alemanha livre, etc. Todos tinham medo. Ao unirem-se com a outra Alemanha, surgem os novos medos: desemprego, exclusão social, aposentadoria insuficiente, competição pela posição. Sempre detonados pelo sistema e estado.

A grande nação liberal eram os Estados Unidos até 2001 tornarem-se, sob a égide do medo e fomentado por governo autoritário e apanhado de cidadãos assustados, desconfiadíssimos. Como se a alma ditatorial que jamais por lá havia se desdobrado, finalmente atraca-se em solo frutífero. Delações, xenofobia, ódio a imigrantes e descendentes, às religiões não-cristãs são hoje parte do cotidiano de quem admirava a irreverência de Woody Allen e resumia sua desconfiança política com a máxima promulgada por Lincoln, com talvez a melhor condensação do que é a boa (inexistente, entretanto) política: “Pode-se enganar alguns o tempo todo. A todos algum tempo. Mas nunca todos o tempo todo.”

Observo o medo entrelaçando-se por cá, nossa normalmente menos amendrontável sociedade brasileira. Tolerante, arrojada e despojada. Hoje as coisas se tornam assustadoras. Violência de grupos (ou alguém controla os motoqueiros, juizes, narcotraficantes, policiais e políticos?) minoritários contra a massa dos cidadãos. Intolerância, com a “ação direta” a garantir a grupos por critérios raciais acessos às universidades, esquecendo nossa discriminação ser social, não racial. A fiscalização das contas privadas pela receita federal, com critérios draconianos, eliminando garantias constitucionais.

O desmatamento desordenado, fomentado pelo estado por melhores exportações de soja e carne com solução de políticas informais de assentamento e desinteresse pela questão ambiental, dizendo ser nosso o que se destrói. Enfim: a imaginada paz social por meio da doutrina do medo.

Chegamos lá, até aqui. Basta ver nosso carnaval. Conhecem festa mais séria, esta, tão aclamada? Nenhuma esculhambação de políticos ou outros grupos de poder nas alegorias. As moças nuas dançando com sorrisos congelados, mortas de medo não se saiam bem, a garantir gordos cachês. As baterias sérias, em pânico para não atravessar o samba com diligentes e duros capos ordenando o sincrônico batuque. Passistas chorando por terem perdido partes da fantasia. Comissões sérias a darem notas, sob risco de vida caso os violentos bicheiros e narcotraficantes não se conformem com uma ou outra. Brigas no dia da apuração, homens adultos se enfrentando como animais por causa de censura crítica a um samba.

Na pobre Salvador a seriedade também se imiscuiu no antigamente alegre carnaval. Tudo caro, cheio, somente turistas e a dança em si já determinada por dijeis holandeses, pela rede de influência do ministro da cultura e o governador, com suas business-like esposas; e o povo se afastando, com porradas levadas pelos guardas de blocos, não permitem a quem não pagou os tubos por abadá se aproximar e dançar. O estado toma conta das festividades. A seriedade e o medo dos foliões é a prova.

E nada fazemos, deixamos nos dominar por esta alcatéia de lobos sarnentos. Até no carnaval.

Somos assim, medrosos.

Zygmunt Bauman, em momento de contemplação e introspecção pelos descaminhos do mundo?

Profissionalismo, a garantir o cachê para o próximo carnaval, a inclusão no livro das escolhíveis e um lugar melhor ao sol.

Nas terras soteropolitanas porrada para quem se aproximar do bloco sem o abadá, pago a preço de ouro.

No morro do Alemão o eterno conflito, até com as passistas. Carnaval é coisa séria e violenta.

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