A Vovó Nica não quer comer!
Por Marina Farkas Bitelman, de São Paulo
Em São Paulo, minha Vó Nica saiu do hospital e foi para casa.
Sua saúde está melhor, ela está lúcida, tem alguma dificuldade para falar, mas entende o que lhe falam e perguntam...
...mas ainda não consegue se alimentar por via oral...
Assim, há 6 dias passou por uma gastrostomia; com uma sonda, recebe o alimento e assim pôde ir para casa.
Por que minha avó não está comendo sozinha? Isso é algo que me intriga demais.
Comer, em minha família, é parte importante de todos os momentos prazerosos e coletivos. Será que minha avó sente-se triste de viver sozinha? Desde que se separou do meu avô ela nunca mais quis namorar/casar com outra pessoa. Prezava muito pela sua liberdade. Mas comer sozinha muitas refeições não é lá tão animador, não é mesmo?
Minha avó tem grandes amigas com as quais convive muito, cuida delas, visita e é visitada. Encontra os filhos, netos e parentes toda 4a feira para almoçar em sua casa, mas mesmo assim são muitas as refeições na semana que faz – ou não faz – sozinha. Ela - que sempre foi apaixonada pela boa comida, tendo receitas secretas deliciosas e sempre contando com ingredientes especiais em casa, além de ter uma ótima cozinheira como seu braço direito - há alguns anos já não tinha o mesmo apetite, o mesmo prazer com a comida.
Alguns de seus objetos de desejos culinários cotidianos, que também são meus, são o pão italiano, francês ou de nozes com manteiga –ela prefere sem sal, eu prefiro com sal -, café com leite, chocolate com casca de laranja, comida japonesa, bife al limone, coquetel de camarão, peixe grelhado perfeito, varenikes, bolo de papoula... e por aí vai. Mas ultimamente seu maior prazer era nos encontrar e alimentar. Seu prato mesmo ficava mais vazio, sua filha querida ou a cuidadora insistiam para ela comer um pouco mais.
A comida em minha família é carregada de valor afetivo, além do valor nutritivo propriamente dito. Eu sempre senti que não comer era quase uma ofensa: “você não quer comer mais disto?” é pergunta que traz significados implícitos: você não gostou do que eu fiz especialmente para você? Você não me ama? Você não quer o meu amor? Minha mãe e minha avó cuidam sempre muito de mim, e comer na casa delas é uma forma simbólica de dizer: “sim, eu aceito seu afeto, e também te quero bem”. Em alguns momentos eu me nutro mais da presença delas, do carinho, do cuidado, do afeto, mas sinto que se eu não compartilhar da comida, para elas não terá sido suficiente!
Como dizia minha outra avó, Rivinha, seu filho – meu pai - estava sempre “pele e osso”, por isso precisava se alimentar mais. Sempre. Só mais no final de sua vida ela se deu conta de que ele estava com um “ligeiro” sobrepeso e que era melhor ela expressar seu cuidade de outras maneiras que não insistindo para ele comer mais. Quando eu era pequena, minha mãe se preocupava muito pois achava que eu me alimentava mal, e que era magra demais. Agora, minha mãe está cuidando da minha avó com todo carinho, e de novo a alimentação é uma preocupação. Curioso!
Quanto esse culto ao comer bem vem da cultura judaica? Dos antepassados que viveram em gélidos países do leste europeu com poucos recursos? Das épocas em que houve recessão, guerra, escassez de alimento? As refeições na minha família podem durar horas, e são o momento por excelência da convivência e das conversas. Mesa farta, sempre cabe mais um. Isso é tão natural para mim... Me lembrei de uma história: certa vez eu estava viajando em Cuba, uma viagem com caráter político e cultural, muito interessante, com um grupo de amigos e o Frei Betto. Certa noite eu e três amigos combinamos de fazer uma reunião com um casal de intelectuais cubanos em sua casa para planejar uma nova viagem com um grupo de lideranças comunitárias brasileiras. O horário combinado: 20h. Qual foi minha interpretação? Havíamos sido convidados para um jantar ou ao menos um lanche. Em minha casa, em minha família, seria servido ao menos pão com manteiga e um chá. Cuba era um país em recessão, sabíamos disso, mas eu nunca esperaria o que aconteceu: nossa reunião foi animadíssima e durou várias horas, e o casal não nos serviu nada além de ... água! Foi de um estranhamento sem tamanho para mim. Eu sei que éramos bem-vindos, mas algo dentro de mim teimava em interpretar como falta de cuidado, de afeto. E não era! Mas era muito estranho. Me marcou profundamente. A sociabilidade existe sem ter a comida para azeitar as relações... e não é que em Cuba a comida tenha pouca importância, lá há pratos deliciosos também.
O que significa o alimento para nós, seres humanos? Existem muitos tipos de comida, tantos quanto temos diferentes culturas. Cada pessoa, família, tribo, grupo social, se alimenta de uma forma, e a comida traz muito mais do que nutrição física. O comer atualiza as tradições, nutre a alma ao reconfortar com memórias, ao compartilharmos com os outros momentos de apoio mútuo, de convivência – pacífica, tensa, seja como for -, de reeditar receitas que trazem memórias de amizades, de familiares, de tradições, daquilo que já não é mais, daquilo que nos é singular, único, ou que é a comida mais corriqueira do mundo, mas feita com um tempero e um carinho que trazem aconchego.
Só sei que quando soube há alguns meses que minha avó, que estava internada há semanas, já tinha se recuperado da pneumonia e de outras doenças oportunistas e que agora só faltava ela voltar a querer comer para poder sair do hospital, para mim soou algo lá dentro, um alarme: como assim? Se minha avó não quer comer, algo muito estranho está acontecendo.
A vida é feita de ciclos, ritmos: inspiramos e logo expiramos; acordamos e mais tarde dormimos; nos alimentamos e depois eliminamos o que não foi utilizado.
Quando nossa respiração está curta, agitada, algo não vai bem. Estamos ansiosos, ou com medo, tristes. Se não queremos levantar da cama por muitos dias, pode ser sinal de depressão. E se não queremos comer?
A linha que separa a vida e a morte é muito tênue, por qualquer coisinha besta, um acidente, de repente a vida já não está mais aqui. Durante a maior parte do tempo nos esquecemos disso. Nos sentimos imortais, fortes, parece que teremos sempre todo o tempo do mundo.
Será que a Vovó Nica quer viver por mais tempo? Essa foi a pergunta que me tomou de um susto. Será que, lá dentro dela, tem um desejo de se encontrar com seus pais e irmãos, com outras pessoas queridas que já se foram? Eu sei e sinto que ela ama muito sua família, seus filhos, netos, genro e noras, bisnetos e seus amigos vivos. Mas sua vida já não é mais tão fácil. Já não consegue ler direito, jogar cartas ou viajar. Precisa de ajuda para as tarefas mais corriqueiras. Será que não comer é o jeito silencioso de ela dizer: “estou cansada dessa vida”? Talvez seja algo que ela não admite facilmente nem pra ela mesma.
Depois de me fazer essa pergunta: “Será que a Vovó Nica quer viver mais tempo?”, me veio uma tranquilidade de que vai acontecer o que tiver de ser. Se ela quiser e se seu destino for esse, vai viver mais um tempo sim. Vai se recuperar, e daqui a pouco pode ser que esteja comendo sozinha, e talvez venha até conhecer minha casa nova na Bahia, que jájá fica pronta, e que ela queria tanto conhecer. Vai ser uma alegria! Ou, pode ser que não. Em breve saberemos.
29 de junho de 2017.