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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Mianmar

Nessa confusão provocada pelo vento tremendo se abateu sobre a Birmânia, com suas milhares de vítimas e incoerentes generais ditadores, a limitar ajuda aos sofredores, a tal Mianmar, assim denomina-se atualmente, fez lembrar-me Pablo Neruda. A ponto de revirar e achar certo livro do homem. De boas histórias e lembranças. Ele, o poeta, apresentando crônicas, pelas quais sempre me encanto. Zeitgeist à toda prova. Encantador!

Neruda foi cônsul nomeado por lá, nos confins da Ásia, me parece ainda com seu verdadeiro nome, Neftalí Ricardo Reyes Basoalto. Imagine-se cônsul chileno, com seus vinte e poucos anos à época, em Rangun... vida emocionante, acreditem. Tinha algo a escrever. E o devido tempo, talvez; muitos diplomatas latino-americanos são escritores, com seu tempo livre.

Chegou ao prêmio Nobel, merecido. Dizia todos os escritores a desejavam, a comenda máxima escandinava.

Ele talvez discretamente o desejasse mais, daí “culpar” a todos pela ganância, atenuando sua procura pelo supremo reconhecimento. Enfim, homem extraordinário, reconfirmando após ler Para nascer nasci, Difel Difusão Editorial, 1979 *.

Escrever sobre este ícone humano é complexo; melhor, com as devidas licenças e espero não provocar iras dos sempre raivosos licenciantes, citar alguns trechos desta obra esplêndida, se me permitem.

Observem a inicial de Inverno nos portos:

”É triste deixar para trás a terra indochinesa de aprazíveis nomes: Battambang, Berembeng, Saigon. De toda esta península – não em flor, mas em frutos – emana um consistente aroma, uma pertinaz impregnação de costume. Que difícil é deixar Sião, jamais perder a etérea, murmurante noite de Bangkok, o sonho de seus mil canais cobertos de embarcações, suas alturas, seu corpo de bailarina, na graça. Contudo ainda impossível é deixar Saigon, a suave e cheia de encanto.”

Em algumas frases faz-nos sentir aromas, ver paisagens, ter saudades de locais jamais vimos. Artífice das palavras.

Revela curiosidades em Chamo-me Crusoé...

”Perguntei-me muitas vezes por que Robinson Crusoé chegou até nossa ilha do Pacífico para se especializar em solidões.(...)

Vou revelá-lo.

Porque já a conhecia. Não se tratava de sua primeira visita. E não tenho certeza de que não tenha voltado depois.

Porque em 10 de janeiro de 1709, Alexandre Selkirk (um nández) ** (...) foi nomeado contramestre da fragata Bachelor, que pilhava em nossos mares. Selkirk-Crusoé sabia o que fazia ou então era atraído pelo ímã da ilha.

É preciso examinar por que Robinson Crusoé, livro entre muitos livros, fascinou, continuou e continua fascinando meio mundo.”

Daniel Defoe, a escrever a magistral obra Robinson, certamente baseou-se na aventura de Selkirk, na ilha por quatro anos. Neruda faz do episódio deliciosa crônica; ligando os homens, personagem e criatura.

Há escritoras e escritores de premio Nobel excelentes de ler. Algo superior lhes faz merecer a laude. Alguns difíceis, cito a complexa Elfriede Jelinek, outros em tempos pós-comenda de alguma forma não mais acertam. Mas em média são extraordinários e recomenda-se; sempre.

Absorvam com prazer este Neruda.

* Difel ainda existe?

** Não descobri o que é um nández.

Um pouco da prosa de Neruda neste extraordinário livro.

Morto em 1973. Merecemos tantos anos sem sua escrita?

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