Bar.bá.rie
Por Erica Teixeira, de Salvador
Barbárie significa "agressividade primitiva humana, ato considerado desumano porque não respeita os fundamentais valores conquistados no campo da ética e do direito, da ciência, da democracia pluralista e da própria organização social".
Barbárie é retrocesso. É dar marcha ré na evolução da sociedade. É levantar a bandeira, vez em quando, da nossa condição inerente de animais que, muitas vezes, podem não refletir sobre o que fazem. Ou refletir e se portar de modo grotesco, não sentindo qualquer arrependimento pelas condutas animalescas que praticam.
Barbárie também é o que vimos agora a pouco. Barbárie porque foi um jogo desleal. Não houve W.O. Não houve aperto de mão. Não foi 1x0, 3x0 ... Foi 30x1. Inclusive, achei fantástico ver diversas pessoas que se manifestaram contar, número a número, a quantidade de garotos que abusaram da menina. Foi barbárie porque não se satisfizeram com a consumação do ato. Houve gravação, risada, entusiasmo ... E todas as condutas se deram aos olhos de quem foi agente passivo e não teve qualquer direito à defesa. Foi barbárie porque poderia ser sua filha, sua amiga, sua irmã, sua namorada ou até mesmo sua semelhante. Foi barbárie porque quem perdeu, não perdeu apenas um jogo. Quem perdeu, perdeu humanidade. Perdeu dignidade. Perdeu respeito. Perdeu consciência. Perdeu integridade física. Perdeu tantas coisas que eu paro para me questionar infinitas vezes com que olhos essa menina vai enxergar os seres humanos. Me pergunto como indivíduos conseguem obter uma ereção com a desumanização alheia. Como alguém consegue ter prazer sem suscitar se o outro também está sentindo prazer ?
Estupro é uma violência que transcende qualquer razão de ser, porque o que está em jogo são duas coisas fundamentais na construção de um ser: sua sexualidade e seu direito de consentir, de escolha. Essa prática agride fisicamente, psicologicamente e moralmente nosso gênero pela simples condição de sermos mulheres. Ousaria dizer que nenhuma outra agressão poderia ser tão gravosa quanto negar o direito de consentir. E os números não mentem. Os números gritam, a cada 11 minutos, que enquanto eu escrevo isso, alguém está vendo negado o seu direito de consentir também.
Como de costume, em proteção à família quadrangular, aos bons costumes, à religião, à moralidade, às mulheres belas, recatadas e do lar, muitos (podem, sim, se banhar na piscina de carapuças) levantaram argumentos questionáveis. As circunstâncias envolvendo a vítima, seus atributos, suas vestimentas, sua maternidade, no meu ver, deveriam apenas lhe dizer respeito. Buscar nexo causal entre o tamanho de sua saia e 30 penetrações quase que simultâneas remonta ao pequeno substantivo aqui trazido: legitima-se a barbárie.
A cultura do estupro não afasta a carga negativa do ato em si. Ela faz pior: ela partilha a culpa. Como se ambos, agressor e vítima, conjuntamente, estivessem bordando uma toalha e o ponto equivocado de um desembocaria na agulha mal posta de outro. E daí desencadeia-se, talvez, a pior das sensações que uma mulher pode sentir: a de culpa pela conduta alheia e pelo simples fato de -coincidência ou não-, repito, ser mulher. A partilha estigmatizada dar razões que levam alguém a estuprar é o mesmo que acorbertar quem mata. Porque sim, tenho para mim que todas as que sofrem esse tipo de abuso morrem um pouco em sua humanidade.
Acreditando que a mídia poderia fazer suas vezes de justiceira social, postura reiteradamente vista em momentos outros que aqui não cabe suscitar, vem e transforma o discurso da vítima em meras alegações. É claro, uma pessoa que resolve relatar a barbárie que sofreu pode facilmente estar mentindo. Para que inventar que 30 animais acharam de bom grado brincar de Brasileirinhas com uma, U M A, garota, transformando-a em brinquedo sexual ? Que grande serviço a Globo faria se também reservasse 20 minutos do Jornal Nacional para falar um pouco da Cultura do Estupro vivida no Brasil. Acontece que é mais fácil reposicionar o lugar de quem sofre, atribuindo-lhe parcela de culpa.
Não frequento bailes funk. Não tenho filhos. Não ando publicando fotos sem roupa. Não saio à noite sozinha. Não tenho três namorados simultâneos. Ainda sim, preciso ouvir infinitas vezes assobios, elogios pejorativos, comentários escabrosos, abordagens indignas, sem falar as diversas vezes em que deixo de fazer coisas pelo simples fato de ter medo de sofrer qualquer tipo de agressão injustificada pela minha condição de mulher. É importante lembrar, inclusive, que os homens que fazem são de toda e qualquer classe social, o que agrava a situação. As jaulas não podem ser minhas. Elas estão protegendo o lado errado da briga.
Espero que nossa condição inerente de animais não nos desumanize.
Somos assim. Mas não deveríamos.