Retrato sem fotografia
Por Abílio Guerra, de São Paulo
Leio no jornal a notícia nonsense, onde um sujeito que deveria estar preso, detona o processo de impedimento da presidente da República.
O ônibus estanca, emperra. Uma manifestação logo à frente.
- "Motorista, vou descer!"
Comigo, duas ou três pessoas saltam do coletivo; ao atravessar a faixa de pedestre, noto que o motorista é uma mulher, a quem agradeço. Na frente do Masp, o motivo: uma centena de negros protestam. Sem histeria, apenas convictos, gritam:
- "Sem hipocrisia, abaixo Alckmin e a polícia fascista! Sem hipocrisia..."
Pergunto para uma negra, baixinho, qual é a questão; a resposta vem rápida e sem novidade: as mortes constantes nas favelas e periferia. Continuo minha caminhada, na minha frente, de mãos dadas, dois garotos gordinhos, bem vestidos num estilo que não sei o nome.
Na frente do shopping, um rapaz negro de cabelos encarapitados chega deslumbrante sobre patins de oito rodas fosforescentes; atrás dele, uma morena macérrima e linda, de cabelos esvoaçantes, talvez a namorada, com patins mais discretos. Da banca de jornal escapa uma moça muito bonita, cabelos negros e enrolados, sorridente, segura de sua negritude.
Desvio dela e continuo minha caminhada. Ao virar a esquina, noto que os dois ursos continuam na minha frente, as mãos ainda entrelaçadas. Estão mudos, talvez fazendo as pazes.
O celular está sem bateria. Hoje não tem foto.