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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Sessentão

Nesse 11.11.2015 faria 90 anos. O que teria escrito? pergunta a filha e editora Denise Teixeira. Mas aos sessenta temos o registro.

Por Euclides Neto, de Ipiaú, Bahia

Vamos pelo caminho e, de repente, chegamos aos sessenta anos. Jamais diria sexagenário. De logo, respondo que não me sinto velho. Ou digo isso para não parecer tal? Sei não. Afirmo que as ideias continuam vibrantes como aos dezoito anos! Os sonhos andam como aos dezesseis. E a sofreguidão de viver como aos dez.

O resto - que pena- não posso contar vantagens.

Feliz? Sem dúvida, Desde menino não sei quem tenha colhido mais afeto e afago. Meu primeiro irmão chegou quando eu andava na casa dos cinco. Até aí fui o centro de todo mimo. Vivemos por esse tempo em casa de palha e taipa.

Minha mãe dormia de pistola à mão com medo dos malfeitores que fuçavam as matas. Meu pai na estrada, tocando seus burros. Depois ele adoeceu gravemente: bexiga da peste, tratada pelas mãos experientes de um tropeiro, com folhas de bananeiras e álcool canforado.

Passei pelos aprendizados da vida. Morei na roça, de onde partia madrugadinha para vender dez litros de leite a duzentos reis e frequentar a escola de uma santa e batista fessora leiga. Servi ao exército durante a Segunda Guerra Mundial. Ganhei estrelinhas, sim senhor. Fui interno em Colégio Jesuíta. Servi de empregado doméstico na pensão do Pe. Torrend, em Salvador, e tomava conta de um sítio para retiros espirituais, em Mar Grande, tendo, para isso, de atravessar a Baía de Todos os Santos, semanalmente, a fim de fiscalizá-lo. Também era sacristão.

Por onde andei fiz amigos, saboreei a vida. Aprendi. No fundo, um místico. Socialista? Sim. Pleno de amor. Por tudo. Sou capaz de amar a quem me queira mal. Fiz do perdão uma prática de vida, ou como dizia Gandhi: nem tenho a quem perdoar. Pratico a tolerância e a arte de ser livre. Aprendi a liberdade com meu pai. O perdão, com minha mãe. Aprendi a conter a frustração, pelo que não sofro. Jamais pensei ter o impossíve1. Certamente possuo mais do que necessito e mereço.

Tenho recebido mais do que já dei. Deveria fazer doação do que possuo, para que retornasse como cheguei. Gostaria de viver exclusivamente do meu trabalho. Ideologia? Certamente. Para completar a felicidade (ou a vaidade?), ficarei satisfeito se ainda escrever um bom livro. Espero chegar lá. Fascina-me esta ideia, que me acompanha desde os quinze anos.

Não mudaria a minha vereda. Se ficasse no Rio de Janeiro, quando lá estive, aos vinte anos, com o Mestre Graciliano Ramos, não teria encontrado tudo de bom que achei por onde meus passos me levaram. Foi melhor ter me fixado em Ipiaú. Sempre gostei da terra, da advocacia e de escrever.

Lá, talvez só fosse escritor. Aqui, sempre estive com os mais necessitados. Nunca advoguei para os bancos, agiotas e exportadores multinacionais. Jamais acusei. Logo cedo, no começo da minha carreira, descobri que os trabalhadores tem sempre razão: direta ou indiretamente. Aqui me casei com a esposa que encheu a minha vida de venturas. Tivemos filhos sadios.

Adoráveis. O pouco que construí tenho a quem legar, sabendo guardado em mãos melhores que as minhas. Não enriqueci porque não quis. Felizmente a riqueza não me empanturrou. Ninguém tem melhores amigos que eu. Amo-os profundamente. Sinto-me útil aos meus de sangue. A alguns dos meus quatorze irmãos dediquei, por força da caminhada, cuidados de pai. Multipliquei os meus filhos, pois.

Sinto-me de alforges arrumados, tranquilo, para continuar a viagem. Sinto-me, igualmente, sadio e equilibrado nos transtornos que os órgãos e tecidos vão apresentando. Tudo vai bem. Se fosse proferir o nome de cada filho, talvez a emoção me transbordasse em lágrimas.

Com minha mãe vive a fonte, sinto-me criança: o mesmo menino das manhãs de chuva e sol, carneiro e armadilha, quando procurava a mata em busca de caça miúda. Até a saudade de meu pai continua muito terna. Do trabalho, das dificuldades, sempre colhi o sabor da vitória.

Gostaria que meus netos fossem como meus filhos. E gostaria que estes lhes ensinassem a mansidão com altivez. A bondade para com todos. A lealdade. O respeito ao trabalho próprio e ao dos outros. Ensinem uma profissão que não careça assalariar a outrem: engenheiro ou carpina, advogado ou pedreiro.

O trabalho insubstituível para o espírito e para o corpo. Diga-lhes que o maior segredo da felicidade é encontrar a profissão que seja exercida como um lazer. Evitem a fortuna, que escraviza. Fujam do luxo e da ostentação, que ridicularizam. Do conforto excessivo, que embrutece.

Do orgulho que frustra e infelicita. Descobri muito cedo que o dar não deve ser com o fim de receber, mas que, adiante, colhem-se recompensas. Pode-se ficar contra o homem probo, mas nele se confia. Pior que a ingratidão é exigir a gratidão. Fazer o bem é dever e não virtude. A caridade também não o é: fazê-la é quitar o muito que recebemos dos demais. Podendo, seja religioso.

Caso contrário, respeite todos os credos, sem escapar dos políticos e filosóficos. Seja tolerante: a sua verdade pode não ser a verdadeira, por mais evidente que pareça. Mas acredite nela, fervorosamente. Sem deixar de aceitar a alheia, quando julgá-la provada. Busque a felicidade, até onde não comprometa a do outro, lembrando-se que ela é uma festa: ninguém a faz sozinho.

Ainda teremos muito tempo para estar juntos. Espero chegar às oitenta primaveras, quando rememoraremos juntos esta carta com a mesma paixão pela vida. Até lá: minha mãe, minha esposa, meus filhos, netos, irmãos, genros, noras, cunhados, meus queridos amigos!

Euclides Neto

Ipiaú, 11.11 .85

Texto cortesia Denise Teixeira

Euclides Neto, 1925 - 2000. Escritor baiano da fine estirpe, advogado, político.

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