Dia do Juízo e da falta de
Por Humberto Werneck, de São Paulo
Se a melhor maneira de entrar num cemitério é ainda em vida, por que não fazer escala neste aqui, enquanto vou errando, sem erro, pelas ruas de Paris? A gostosura do outono e a certeza de uma viagem de ida e volta quase me fazem clamar, como Bilac, naquele soneto em que o poeta, agoniado, espetou uma dúzia de pontos de exclamação: “Nunca morrer num dia assim! De um sol assim!” Decido também: é para um céu que nem este, sem nuvens, que eu quero ir quando, muito a contragosto, bater as botas.
Não sou novato no cemitério Père Lachaise, onde gostaria de estar – vivo, de preferência – no Dia do Juízo, para testemunhar o primeiro encontro de Marcel Proust, Edith Piaf e, outra vez em carne e ossos, Allan Kardec. Você consegue imaginar? Milhares de inquilinos, célebres ou anônimos, emergindo de suas tumbas, em trajes de época, no que haverá de ser o mais assombroso desfile de moda já realizado.
O visitante pode ter, aliás, a impressão de que o espetáculo já começou, se topar com a sepultura de Georges Rodenbach, escritor belga do século 19. Apressadinho, o autor de Bruges-la-morte aqui está, com meio corpo para fora da cova. Esverdeado pelo azinhavre, sustenta com um dos braços um pedaço da lápide de pedra, quebrada no afã de retornar ao mundo dos vivos, num esforço extraliterário com o qual ganhou uma notoriedade que, vivo ou morto, seus livros jamais lhe proporcionaram.
Ao contrário de Rodenbach, Félix Faure, outro inquilino do Père Lachaise, já era famoso quando passou desta para melhor, em 1899. Melhor? Há controvérsias, dado o fato de que ele, presidente da república francesa, apagou em pleno ato sexual, no Palácio do Elysée. Não nos braços de dona Marie-Mathilde, mãe de suas filhas, que dormia a uns metros dali, mas com uma segunda-dama, sua amante Marguerite, por sua vez casada, vive la France!, com o pintor Adolphe Steinheil.
Hoje nome de avenida em Paris, o presidente Faure transitava entre a cama titular e a suplente, e na segunda veio a sucumbir, aos 58 anos, disso que Gastão Cruls, citado por Pedro Nava, chamou de morte macaca, aquela que sobrevém durante o coito. Caiu duro, colhido pela morte qual banana em cacho por símio voraz. É curioso: tenho notícia de várias ocorrências dessa causa mortis, entre elas a de um cardeal francês, nos anos 1970 – mas nenhuma protagonizada por alguém do sexo feminino. Cada macaca no seu galho. Caetano Veloso teria o que acrescentar aos versos de Homem, canção em que confessa inveja da longevidade e dos orgasmos múltiplos da mulher.
No affaire Félix Faure, detalhes os mais íntimos de seu macacal falecimento vieram à tona, nos jornais, inclusive, não faltando insinuações a respeito da modalidade específica do procedimento erótico causador do óbito. Para não ser apanhada com a botija na boca, Marguerite escafedeu-se, por certo a balangar as prendas, pois esqueceu na alcova o corpete com que empacotava as carnes – peça que um assessor guardaria como relíquia lascivo-mortuária. Quando veio o padre e indagou se o presidente conservava a consciência, alguém respondeu: “Não, ela escapuliu pela escada de serviço”. Sem excessos naturalistas, o episódio inspirou em 2009 o filme A Amante do Presidente, com a brasileira Cristiana Reali no papel de Marguerite.
No mesmo Père Lachaise onde Faure se estende em bronze, jaz também, em postura semelhante, uma figura a que só depois da morte veio colar-se uma legenda erótica: o jovem jornalista Victor Noir, assassinado em 1870 por Pierre Bonaparte, primo do imperador Napoleão III. No correr das décadas, diluiu-se a memória de um crime político capaz de despejar multidões nas ruas, ao mesmo tempo que em torno da vítima se sedimentava uma aura de sensualidade, alimentada pela bela figura de Victor Noir, meio largada sobre a lápide, chapéu caído rente à perna direita, como quem acaba de ser abatido.
Os muitos visitantes de seu túmulo não raro se deparam com batom recém-impresso sobre os lábios entreabertos do finado. O detalhe que rouba a cena, porém, está mais embaixo, na inusitada protuberância de seu sexo, sobre a qual, conta-se, vêm esfregar-se dedos femininos, pois em algum momento estabeleceu-se a crença de que acariciar essa parte soerguida da estátua ajudaria a viabilizar desejos de ser mãe. De tão tocada, tornou-se luzidia, em contraste com o escuro do bronze velho, e é de imaginar que ainda mais inflado estará o ego de Victor Noir quando ele, no Dia do Juízo, por inteiro se puser de pé.