De que violência estamos falando ?
Por Erica Teixeira, de Salvador
Mais uma vez o Brasil avança.
Hoje, li em algum lugar que "7 milhões de brasileiros foram obrigados a pensar na violência contra a mulher". O ENEM achou por bem escolher como tema de sua redação um dos debates mais acalorados que já vivenciamos.
E por mais óbvio que pareça, certas realidades são bem difíceis de se enxergar. E você, meu caro, se leu a palavra realidades como se eu estivesse sendo audaciosa o suficiente para doutrinar o que é certo e o que é errado, aqui encerramos nossa discussão.
Falar de violência é bem vendável e sedutor. Inclusive, acho desnecessário fazer qualquer introdução conceitual. Violência é substantivo que não comporta qualificações para se explicar. Se grave ou branda, jamais seremos capazes de avaliar seus danos no corpo -e na mente- de um indivíduo, imagine de uma mulher.
Violência contra a mulher é outra coisa.
Essa espécie, antes de imputar qualquer instinto humano, é construção histórica. Ou melhor, construção do próprio homem. A violência contra a mulher começa no imaginário, no olhar: a perspectiva masculina - infinitas vezes passada desapercebida por vocês, indivíduos tanto quanto insensíveis - é, inconscientemente, de um ser superior. Na força, na sagacidade, na linearidade de pensamento, na estabilidade hormonal ou na própria posição social de provedor, não sei ... Mas passaria tempos e tempos rememorando significativos gestos de inferiorização feminina a qual somos submetidas.
Falar em números, exemplos, demonstrações de machismos ou qualquer outra aresta da violência contra a mulher também já é desnecessário ao que tanto me incomoda. Devemos ampliar os horizontes e propor um reposicionamento de conduta e de perspectiva: a perspectiva do sujeito passivo."
Na verdade verdadeira, o que mais me causa êxtase é a quebra, feita a público, em alto e bom tom, de mais um dos muros que as amarras sociais brasileiras ainda insistem em sustentar a troco de uma falaciosa moralidade democrática que - supostamente - afirmamos viver. O primeiro grande passo de qualquer sociedade é o reconhecimento de suas enfermidades. E, por vias transversas, a inclusão de temas na pauta dos debates mais importantes para tornar uma sociedade plenamente livre. Espero que não paremos por aqui. Debater abre portas, mostra caminhos e afasta os véus da cegueira moral. Ou melhor, da falsa moral. E, como já dizia Einstein, uma mente jamais volta a ser o que era, quando se tem uma nova ideia.
O Brasil está doente. Disso não temos dúvida. O que os brasileiros esquecem é que ele sempre esteve. Mas, infelizmente, uma das nossas maiores enfermidades é a perda de memória recente. Acho engraçado como soa ofensivo dizer que muitas, mas MUITAS índias foram estupradas para que meus olhos puxados e meu cabelo quase azul me pertencessem. Quantas outras negras, brancas, mulatas, pardas, transexuais, pelo simples fato de ser (ou se tornar) mulher, se viram obrigadas a sofrer abusos de todo e qualquer gênero ? O exercício de se por no lugar do outro, deve ser praticado tanto quanto a nossa capacidade cognitiva nos permite: podemos nunca ter sofrido qualquer forma de agressão, seja porque somos fisicamente "privilegiados", seja porque nos encontramos em condição social relativamente confortável ou até porque temos um pinto entre as pernas, mas subestimar as cicatrizes e estigmas que o outro carrega, é de um egoísmo inenarrável. Ou melhor, demonstra o quão machistas nós - homens e mulheres brasileiras - somos.
A minha angústia em ver gente bradando ser o feminismo um tema de esquerda chega a doer na alma: em quê seu posicionamento político interfere quanto às agressões - de toda e qualquer qualidade - vivenciadas por nós, desde o dia em que fomos concebidas ? Não, não se trata aqui de feminismo. Violência vai muito além disso. Se trata de (des)respeito: respeito ao corpo, à alma, à integridade e ao abismo de diferenças que separa vocês, homens, de nós, mulheres. Se seus axônios não lhe permitem perceber a incoerência do posicionamento, peça para sair.
Se nascemos mulher ou se nos tornamos mulher, com o perdão da discordância, Simone de Beauvoir, ainda não me sinto plenamente capaz de responder. Mas, enquanto estiver nesse processo de vivências com minha anatomia feminina, com minhas curvas, minhas inseguranças, (in)certezas, amores desmedidos, fragilidades questionáveis e descobertas de prazeres inenarráveis, prefiro que respeitem o que, em boa gramática, me atribuem como ser, estar ou me tornar mulher.
Brasileiros, continuem assim: destruindo muros.
Nós, mulheres, agradecemos.