Canetada à brasileira
De Erica Teixeira
Ficou grandinho, mas lê quem quer. O siri na lata aqui não ia se calar.
Em conversa com 5 pessoas por quem tenho infinito apreço, suscitei, propositalmente, um tema que vem sendo tratado sob as mais diversas perspectivas possíveis. Como sabemos, está em pauta a discussão da redução da maioridade penal. Três são extremamente a favor, ao passo que dois são diametralmente contra. Coincidência ou não, os últimos dois são, respectivamente, meu professor, Promotor de Justiça, e um grande amigo, Defensor Público, especializado em menores infratores (que, inclusive, se manifestou de modo absolutamente sensato - aos interessados, leiam na timeline de Bruno Moura ).
Após os calorosos embates (onde alguns chegaram a se chatear com meus questionamentos - não briguem comigo ), vi uma pagina no Facebook que tratava da matéria em sentido favoravel à redução, abordando ponto a ponto os tópicos mais importantes. Sem dúvidas, foi um texto bem elaborado e razoavelmente consistente, pena que não resolveu o problema. clicando aqui. Ele se perde nos aspectos tratados em 7, 8, 9 e 10.
Desconhecedora e curiosa que sou, comecei a, no pouco tempo que tenho encontrado, ler alguns artigos, manifestações e, em particular, o livro de Cesar Bitencourt (obra que me guiou durante o curso das disciplinas de Direito Penal - suas elucubrações críticas deixavam a matéria mais legal). Temas polêmicos merecem ser estudados, avaliados em sua realidade cultural, organizacional, social e, mais do que qualquer coisa, discutidos. A omissão do debate macula a democracia e a liberdade de expressão. E pior: emburrece ao extremo o homem.
Por óbvio, preservar a segurança pública é um discurso extremamente sedutor. Aliás, vindo da boca dos que nos representam, é acreditar que, mediante a criação de (mais?!?!) leis, a sociedade civil (leia-se classe média suprimida) terá a sensação de mais segurança.
Pois bem, aqui vamos.
Redução de maioridade é inconstitucional. Garantias atinentes aos indivíduos, previstas na Constituiçao, são cláusulas pétreas (e elas o são por sua natureza jurídica, não pela posiçao geográfica no texto de lei - para os que disseram ser cláusula pétrea apenas as previstas no Art. 5o). Cláusulas pétreas preservam o sistema jurídico democrático sob o qual vivemos, até porque todo Estado Democrático é regido por um Constituiçao (seja ela sistemática ou analítica). Redução de garantias, aliás, me preocupa muito mais: criar precedentes que permitam a redução da proteção ao indivíduo são extremamente perigosas para um país como o Brasil, principalmente no contexto instável em que nos encontramos. Asseverou o entendimento, por sinal, o Min. Marco Aurélio (que inclusive acredita não ser inconstitucional a emenda, mas aparentemente se posicionou contra a redução - não acredita ser ela eficaz). E, nobre colega, caso você não saiba o que significa segurança jurídica, sente seu belo derrière na cadeira, estude e se informe.
Em bom juridiquês, qualquer aluno de Direito que se preza leu, ao menos uma única vez, alguma obra de Miguel Reale. Nela, foi tratada a "Teoria Tridimensional do Direito", ou seja: valor, fato e norma são institutos indissociáveis. É impossível criar uma lei que não manifeste a realidade na qual se vive. Seria, noutras palavras, criar lei sem qualquer eficácia, amontoando mais letra morta no ordenamento brasileiro. Em baianês, seria criar uma lei proibindo o consumo de acarajé com vatapá. Alguém vai mesmo deixar de comer por causa disso? Me poupe. Aliás, melhor: seria o mesmo que criar uma lei proibindo a matança de galinhas pretas em rituais de manifestação religiosa. Poucas pessoas mantém a prática, mas os que fazem com certeza não deixarão de fazer porque ela passou a ser proibida.
Em termos estatísticos, breve alusão a um texto elaborado por Marcelo Freixo clique aqui sobre a realidade criminológica e carcerária brasileira. Números falam por si só. E caso duvidem da probidade do sujeito, acreditem, ele representa 0,1% dos que querem alguma coisa nas Casas Legislaticas. Essa falácia de "alguma medida precisa ser tomada" foi utilizada da mesma forma para a criação de lei contra crimes hediondos no país. A segurança pública melhorou ? Não. Os crimes diminuíram ? Pelo contrário. Ampliar a população carcerária não vai resolver nada. O Joãozinho que rouba seu celular no ônibus ou o Pedrinho que estupra a estudante universitária não vão parar para pensar se vão ou não deixar de cometer o crime porque a redução foi aprovada. Aliás, há fortes chances de sequer saberem que ela existe: muitos não foram alfabetizados ou sabem ler. E, acreditem ou não, discordo de que eles não devam ser punidos.
Em relação a diminuição dos crimes, chega a ser pífia a discussão. Não precisamos fazer muitos enforços pra perceber que o Brasil não está mais seguro, pior ou menos violento. É muito pobre o argumento de que cuidar do 1% de jovens criminosos vai solucionar um problema estrutural, social, urbano, politico e organizacional do País. A classe média burguesa precisa sair de seus carros blindados, seus bairros nobres, seus óculos de sol Chanel para se questionar sobre a realidade em que nos encontramos. Segurança pública não é criar lei, é previnir a necessidade de sua criação. Coisas importantes e coisas urgentes são bem diferentes: a urgência da reestruturação brasileira nada tem a ver com a importância de serem punidos os menores infratores. Como bem aclareou o defensor público, as casas de internação, por si só, se diferenciam de presídios apenas pelo nome. A excrecência que elas representam em quase nada difere se difere do recinto em que se encontra um detento comum.
Quanto aos argumentos de que os jovens tem total discernimento do que fazem, ok. Vamos lá. Reduzida a maioridade penal, as implicações civis virão junto. Isso implica dizer que, uma vez imputável, será também o sujeito de 16 anos civilmente capaz de dirigir, obrigado a votar (circunstância que já foi criada simplesmente para que fosse aumentado o colégio eleitoral, dando mais votos -moeda de troca- aos representantes politicos e seus partidos), celebrar contratos, compor sociedades societárias, beber e praticar todos os demais atos da vida civil facultados aos maiores de 18. Vocês acham que um adolescente com todas essas liberdade vai fazer menos merda na vida ? ACHO que nao. É óbvio que ele é dono de suas faculdades mentais, mas existe um coeficiente bobo que interfere substancialmente nas escolhas que o indivíduo faz chamadas "maturidade". Cortar cana aos 16 anos com autorização da lei vai gerar um problema bem maior do que estamos dimensionando ... Pior: todas as vezes que a sua filha de 16 resolver chamar a colega de quenga ou vadia, os riscos serão bem maiores.
Mas e os crimes hediondos ? Prato cheio pra mídia (livre, porém cruel e escrota - com todo o perdão da palavra), criar lei pros casos extremos é, mais uma vez, cuidar da causa pela consequência. TODA e qualquer sociedade vivenciará isso: como bem disse Hobbes, assinamos um contrato social .. pena que a existência de gente louca e sem escrúpulos é fato atemporal, incorrigível pelo sistema. Sem dúvidas, casos assim merecem tratamento diferenciado/especial. Nisso, pode-se abrir questionamentos maiores acerca da consciência do adolescente que comete tais atrocidadas e puni-los de modo mais severo.
Por fim, em alusão a uma aula ministrada pelo Promotor de Justiça, foi rememorada a "teoria das janelas quebradas" (para maiores informações: clique aqui. Essa teoria explica que, basicamente, uma sociedade cujas janelas -equiparadas à estrutura mínima que deve ser dada pelo Estado- não são cuidadas, há uma propensão de que elas sejam mais destruídas ainda. Em outros termos, é dever do Estado e de seu povo cuidar para que as janelas (educação, saúde, segurança pública preventiva, investimento e todas as garantias básicas) estejam sempre em boas condiçoes, evitando a aparência de desordem, que propicia substancialmente a influência no cometimento de crimes. E, um vez cometidos, legitima-se o ius puniendi de modo mais severo que o habitual. O Estado de Bem estar social (que prima por essas garantias mínimas - welfare state) foi implantado da pior forma possível -um dos motivos pelo qual, inclusive, a maquina estatal está absurdamente inchada- e perde qualquer legitimidade para imputar tais leis mais severas.
Dito isso, acaba ficando um pouco mais claro os motivos pelos quais os os americanos botam pra lascar quando um menor comete um crimes: o Estado americano (com todas as ressalvas do planeta) cuida muito bem de suas janelas, afastando consideravelmente motivos para que crimes sejam cometidos, especialmente por menores.
Como sempre, é muito fácil limpar sangue de ferida e fazer um belo curativo. Difícil é pegar o bisturi pra descobrir a podridão em que nossas entranhas se encontram. Já dizia Hermógenes de Castro Mello, "somos assim". Os paliativos estarão ai pra fazer o que sempre fizeram com primor no Brasil: empurrar o problema com a barriga.
Espero que a sociedade continue debatendo bastante o tema. Todas as menções que fiz nem chegam perto da infinidade de aspectos relevantes no debate. Não restam dúvidas que medidas precisam ser tomadas e quem comete crimes ou atos infracionais deve responder por seus delitos. Mas tirar o foco de outras pendências BEM mais urgentes no país é fechar os olhos para o que realmente importa (reforma política, aumento do fundo partidário e lava-jato tão aí sapateando na nossa cara ..).
Um chêro.