No parque sem cachorro
Por Humberto Werneck
Sou um sem-cão.
Sei disso há décadas, mas às vezes bate com mais força a consciência desse tipo específico de solteirice. Agora, por exemplo, na minha caminhada matinal no parque, mais que nunca me sinto um sem-cão. Olho em torno: quase todos têm o seu, alguns mais de um. Deve haver algo errado comigo.
Quero deixar claro que não estou reclamando. De jeito nenhum. É questão de feitio. No trato com os bichos – aí não incluídos os bípedes implumes e pensantes –, sou irremediavelmente platônico. Desde sempre, pois não fui eu que me inventei assim. Já contei do dia em que, na fazenda, eu bem novinho, um velho tropeiro, notando o meu olhar ressabiado ante uns cavalos, fez uma leitura definitiva de minha pessoa: “Esse menino”, disse ele a minha mãe, “não tem vocação pra animal...”
Como alguém que até tivesse vocação para alguma coisa, mas não talento, o que costuma inviabilizar o objetivo, bem que eu tentei, disposto a tudo para me fazer aceito como um de seus iguais pelo meu pai passarinheiro. Fracassei. Lembro-me vagamente de em algum momento ter tido um peixe, e foi só. A menos que venha a cair na sarjeta, terei, no meu último dia, atravessado a vida sem sentir na ponta do nariz a umidade viscosa de um focinho de cachorro. Ou, malícia à parte, dividido a cama com um gato.
Devo lamentar?
A esta altura, não posso fazer nada, a não ser me escorar em desculpas: na minha casa, todo o amor pelos animais parece ter sido fagocitado por alguns de meus dez irmãos, em especial o Flávio, que viveu e morreu pela cinofilia. Inesquecível, o orgulho dele quando nos compareceu com o primeiro cão de raça (não me pergunte qual), portador de mais sobrenomes do que muita gente (neste parque, por exemplo) que se orgulha ela mesma de reluzentes pedigrees: Herman Paolo de São Roque. Vulgo Paôlo. Inesquecível, também, a fúria do Flávio quando, na fazenda, os filhos do caseiro entenderam mal o prenome daquela perfeição sobre patas e se puseram a chamá-la de “Caôio”.
Não tenho, insisto, aversão a bicho; ao contrário, gosto da maioria deles – desde que à distância. Nesse particular eu saí à minha mãe, que também não queria confraternização zoológica. Deve ter penado, coitada, nos 56 anos que passou ao lado de um marido que enchia a casa de gaiolas e chegou a criar vermes para alimentar a passarada. Adaptou-se. Um dia, tendo escapulido uma araponga, mamãe foi para o terreiro e, meio a sério, meio na galhofa, performática que era, se pôs a imitar a batida metálica da fujona, téim, téim, téim, diante de uma delirante plateia de filhos e empregadas – e não é que a araponga desceu de onde estava e se deixou capturar?
Durante anos tivemos uma cadela dobermann que se chamava Dala, certamente puro sangue, a julgar pelas frequentes solicitações de cinófilos para que a distinta criatura se deixasse emprenhar por seus machos, em manobras que os meninos da casa, driblando a proibição dos pais, acompanhavam com resfolegante atenção, em mais de um sentido excitados. Não só eles, aliás – também um garoto cuja janela dava para o nosso improvisado motel canino. Não perdia uma. Vim a sabê-lo décadas mais tarde, quando, numa noitada de muita libação e pouca cerimônia, ele contou que se lembrava, sim, daqueles vizinhos: “Cachorro transando! Cachorro transando!” A família agradece.
Uma ocasião, veio hospedar-se em nossa casa um tio-avô cuja mulher era tão conhecida pelo nome, Dalila, quanto pelo apelido – adivinha qual? Antevendo constrangimentos, minha diplomática mãe empenhou-se,com larga antecedência, em instruir a filharada para que desse por uns dias outro tratamento à Dala do quintal. Tudo correu bem, mas ao preço do estresse que você pode imaginar. Enquanto a tia lá esteve, nossa dobermann,prudentemente, não foi chamada de coisa alguma. Veja você onde veio passar esta conversa. Eu ia contar que ontem, no parque, um cachorro por pouco não abocanhou um senhor, eu, que trotava numa aleia estreita. Ainda tive que ouvir que a culpa foi minha, pois demonstrei medo de ser mordido, o que, imagino, feriu suscetibilidades bípedes e quadrúpedes.
O espaço do jornal e a sua paciência se esgotaram, mas peço licença para reincidir no assunto na semana que vem, pois há mais o que dizer sobre a fauna do parque, sobretudo a que trafega, sem coleira, sobre duas patas.