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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Croniqueta de Natal

Nascido em São Paulo, cresci e vivo aqui até hoje. Meus filhos são paulistanos, a ligação com a cidade é forte. Até minha no discurso resistiva esposa baiana, da gema do côco e cacau, no fundo, no fundo, adora essa Paulicéia Desvairada.

E hoje tem mais ligação com a cidade do que esse mísero escribinha.

Sou da Zona Norte, aquela com o péssimo renome de ser abrigo das Senhoras de Santana (apoiadoras do golpe, da falsa moral e dos bons suspeitos costumes). E especificamente de onde chamavam Alto de Santana ou simplesmente Bairro da Caixa d´Água.

Meus pais alemães, ambos nascidos e criados em modestos vilarejos do norte daquele país, preferiam a calma do arrabalde distante, das ruas ainda de terra, do trem da Cantareira e do bonde a ir ao Centro.

Alguma mata e principalmente a quantidade grande de imigrantes alemães, holandeses e checos, a ter certo cheiro da terra natal.

Me recordo da doméstica contratada, Frau Selma, de Santa Catarina e seu alemão perfeito. Do marceneiro Herr Obenauf (se finjia de Papai Noel para nós), da vizinha Frau Meier a me dar chocolates na volta da padaria, da Frau Flach casada e traída pelo seu amado checo Frantisek e, eu já maiorzinho dominando a língua, me atraindo com sua televisão proibida pelo pai (que me permitia a boa senhora assistir de tempos em tempos).

De Dona Mimi Leibholz (não autorizava o termo Frau ), outra vizinha, amarguradíssima judia de Berlim. Aliviada em poder falar alemão com minha mãe e manter os hábitos; todavia se recusava, por razões óbvias, comunicar-se na língua de Goethe (e Hitler...) com os dois filhos.

E até irmos à primeira escola (sabiamente não bilíngüe, um momento de lucidez dos pais), aos 5-6 anos, no tocar da campainha, sem entender o que os moços do gás ou da Light queriam, gritávamos para a mãe que alguém falava o Português desejava algo.

Isolados do mundo brasileiro; ou “deles”, como se referiam a nós nativos os imigrantes europeus, em seus pequenos feudos paulistanos.

Com casos curiosos, um deles natalino.

Por muitos e muitos anos, minha mãe ia a pequeníssima loja no Tremembé, bairro vizinho, comprar as coisas de Natal. Pão de mel, frutas cristalizadas importadas, amêndoas, o destilado alemão forte, Bommerlunder, arenques em lata ou salmoura, falso salmão ( pescada fatiada enlatada com corante, com, dizem, gosto do fino peixe e o complicado nome Lachsersatz), a tal Leberwurst ( paté de fígado de porco ao qual tinha eu tinha grande aversão) além de magazines como a revista Stern, Neue Revue e o semanário Der Spiegel, sempre bem atrasados, coisa de meses.

E ao ir, comentava ser o passeio ao Meisterspion Herr Gimpel. Nunca liguei para o tema, espionagem era coisa tão absurda em relação ao país, nem se discutia o assunto. O que iriam espionar por aqui?

Pois recentemente descobri a história ser verdadeira. O tal Erich Gimpel, dono da modestíssima loja de produtos alemães no Tremembé, falecido em 2010 aos 100 anos, era de fato espião. Porém não era mestre-espião como o denominavam; adiante aprendi ser discreta gozação dos imigrantes com o sujeito.

Treinado pela Abwehr alemã para bisbilhotar nos EUA o que pretendiam contra a Alemanha, denunciado por um colega contra-espião logo após ser desembarcado por um submarino na costa leste dos EUA, foi rapidamente preso.

Julgado e condenado à morte, obteve indulto de Natal pela morte e luto de Franklin D. Roosevelt. E após os anos de prisão foi libertado. A rigor não havia espionado nada, nem teve tempo para tal, por isso a condescendência dos gringos.

Retornou à Alemanha, mas desempregado procurou o Brasil como refúgio, antes que o recrutassem novamente, suponho. E se tornou modesto dono de loja de secos e molhados teutônicos no Tremembé.

Às vezes não acertamos ( ou desejamos ) espionar, somos assim...

Indo à julgamento e prisão, Erich Gimpel.

Comentários (clique para comentar)

Werner Ingo Zander - 06/01/2015 (11:01)

Fantástico seu texto. Parabéns

Flavio Bitelman - 23/12/2014 (08:12)

Feliz Natal meine freund!!!

- 22/12/2014 (20:12)

Emociona.