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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Ditadura, igreja e imprensa

Por Geraldo Galindo, de Salvador

A passagem dos 50 anos do golpe militar de 1964 tem proporcionado importantes debates sobre o período sombrio de uma violenta ditadura que atormentou nosso povo por longos 20 anos. A população brasileira deve estar atenta para que nunca mais na nossa história tenhamos de sofrer com perseguições e falta de liberdade promovidas por aqueles que cometem atrocidades em nome da ordem, da segurança e da "democracia".

Depois das manifestações de junho, quando a Rede Globo foi alvo dos protestos ("a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura) a emissora produziu uma nota que seria uma autocrítica em relação ao apoio incondicional que deu ao golpe durante duas décadas. Quanto nos deparamos com as justificativas da Família Marinho para o "erro editorial de apoio", vemos na verdade uma reafirmação de apoio aos que romperam com a legalidade democrática, se repetindo o surrado discurso das ameaças que haveriam contra o país, como o risco da instalação de uma "república sindical" . Vale lembrar que, com raríssimas exceções - e a nota da Globo é enfática ao reconhecer - , quase todos os grandes jornais, os mesmos que não cansam de repetir exaustivamente a "defesa da liberdade de expressão", não só apoiaram o golpe, mas foram base de sustentação do regime que exilava, torturava e matava.

Se a Globo agora reconhece ter sido um erro o "apoio editorial", mas mantém a cantilena do risco comunista para justificar a posição naquele momento, a Conferência Nacional dos Bispos do Basil, na figura de seu presidente, o cardeal D. Raymundo Damasceno, vem a público afirmar que " foi um erro histórico o apoio à tomada do poder pelos militares", do qual "setores da igreja fizeram parte." Assim, a CNBB não reconhece o apoio oficial que prestou aos militares e que apenas setores da Igreja teriam participado. Como estamos num momento de luta pela restabelecimento da verdade é bom ver a declaração formal da CNBB três meses depois do 1º de Abril: " Transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus , pelo êxito incruento de uma revolução armada. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares, que com graves riscos de suas vidas, se levantaram em nome dos sagrados interesses da nação, e gratos somos a quantos concorreram para libertarem-na do abismo iminente. Não só a CNBB, mas a própria autoridade máxima da Igreja Católica, o papa Paulo VI se manifestou em favor da ditadura. E segundo Frei Beto, em entrevista publicada no UOL no dia 20 de Março, a igreja recebeu financiamento da CIA para promover as "Marchas da Família com Deus pela Liberdade" e tinha em seus quadros os delatores - aqueles sinistros personagens que faziam o serviço sujo de entregar os "suspeitos" que iriam ser torturados e assassinados.

Então, tanto não faz sentido a Globo dizer que foi "erro editorial" - na verdade a família Marinho teve papel ativo na conspiração que resultou num regime discricionário -, como é uma agressão aos fatos a Igreja atribuir a apenas uma parte dela o apoio a uma tirania. Mas, ao contrário da Globo, que apoiou abertamente a ditadura praticamente até seu final, a Igreja católica, especialmente depois do AI-5 (dezembro de 68), quando percebeu que as violações passaram a atingir indiscriminadamente os que resistiam ao terror, incluindo parte do clero, passou a ter uma postura crítica e se transformou num dos principais protagonistas de apoio aos presos políticos. Muitos padres e bispos foram presos e torturados pela cruel repressão gerada a partir de um golpe apoiado pela santa Igreja, que estava plenamente convencida de que aquele acontecimento fora uma dádiva do Deus generoso em atendimento às orações dos cristãos. " Com o passar do tempo, a igreja foi percebendo seus excessos , seus desvios (da ditadura) , entã, se opôs", diz D. Raymundo.

Um reflexão que devemos fazer neste momento é por qual razão, em todos os golpes militares, a grande imprensa e a Igreja Católica estão sempre ao lado dos golpistas. As duas instituições apoiaram duas das ditaduras mais sanguinárias da história da humanidade, as do Chile e da Argentina, sempre com o mesmo discurso da ameaça comunista. Em 2002, na Venezuela, a grande mídia e a Igreja Católica se associaram para promover um fracassado golpe militar contra o presidente Hugo Chaves e a ameaça desta feita era o "populismo". Sempre há um motivo para defender os privilégios dos ricos e a não extensão de direitos aos trabalhadores e ao povo. Não podemos esquecer que na guerra civil espanhola (1936 a 1939) a Igreja Católica funcionou como um braço do fascismo contra os republicanos e foi base de sustentação de uma ditadura tão cruel quando duradoura (40 anos) - tendo feito vistas grossas até mesmo ao assassinato de padres, em meio a centenas de milhares de assassinatos políticos.

Aqui temos um fenômeno paradoxal. A imprensa costuma afirmar com frequência que é defensora da liberdade de expressão, mas, quando necessário para atender seus interesses políticos e comerciais, não vacilam em apoiar e patrocinar golpes ditatoriais. A igreja católica, que não cansa de repetir sua a opção preferencial pelos pobres, em todas as polarizações políticas , quando estão em confronto as elites e o povo, ela fica sempre ao lado das classes dominantes. Em 64, enquanto o presidente João Goulart propunha reformas para ampliar beneficios para o povo e de defesa da soberania nacional, as classes dominantes, tendo a igreja ao lado, faziam de tudo para desestabiliza-lo.

A propósito, o atual papa Francisco, contra o qual pesam acusações de ter sido omisso ou até mesmo de ter ajudado a ditadura Argentina, se transformou na principal liderança da oposição no país quando lá foram tomadas medidas de reconstrução após a tragédia neoliberal imposta ao país pelos prepostos do FMI em conluio com a direita e imprensa argentinas.

Concluo deixando uma especulação. No Brasil, no Uruguai, na Bolívia, países vítimas da supressão das liberdades e de perseguições políticas em passado recente e onde experiências de governos populares e democráticos melhoram as condições de vida da turma debaixo da pirâmide social, não há ambiente para golpes militares na atualidade. E se condições houvessem, as elites desses países, associadas à grande imprensa e talvez ao clero, não já teriam feito o que fizeram em períodos anteriores em nome da "democracia, da família e liberdade"?

Nem só a Globo, nem só a Globo...

Comentários (clique para comentar)

Francisco Taborda - 23/09/2014 (14:09)

Bem deixe-me ver se entendi direito: as ditaduras do Chile, da Argentina e da Espanha Franquista foram das mais terríveis que a humanidade já viu. Isto posto, já que nenhuma referência foi feita à outra metade do espectro político, parece justo imaginar que a União Soviética de Stálin, a Cuba de Castro, a China de Mao, o Cambodia de Pol Pot, a Coréia do Norte de Kim Il-Sung, a Albânia de Enver Hocha e o Vietnã de Ho Chi Min são verdadeiras e exemplares democracias. É certo que as mais de 100 milhões de pessoas que morreram debaixo desses governos foi porque foram acometidas de uma forte constipação. Mais certo, ainda, é que nesses governos não foi cometido o menor deslize no que diz respeito à liberdade de expressão e direitos humanos. Com tudo o que já foi publicado e falado é certo que houve exageros que não deveriam ter sido permitidos. Idealmente, temos de cuidar para que regimes de exceção, qualquer que sejam as suas cores, não sejam estabelecidos. Como dizem, o preço da liberdade é a eterna vigilância. É fazer bem feito o que tem de ser feito. Uma avalição razoavelmente desapaixonada dos eventos do começo da década de 60 – e eu vivi isto de um modo especialmente crítico - indicam que nós estávamos em uma encruzilhada com dois resultados mais prováveis: uma ruptura institucional com um caminho à esquerda, rumo a um governo totalitarista comunista, ou uma ruptura institucional com um caminho à direita, nos moldes do que acabou acontecendo. Naquele momento foi uma simples questão de escolha apoiada pela maioria do povo. E a prova disto é que quando o povo deixou de apoiar o regime caiu. Quando não há uma maioria absoluta apoiando temos uma guerra civil sangrenta como foi o caso da revolução de 1919 na Rússia, a revolução Castrista em Cuba, a Grande Marcha da revolução de Mao, a Guerra Civil Espanhola, e outra menores. Um problema que insiste em não ser analisado com frieza é que houve exagero dos dois lados. Hoje só se fala em exagero de um lado só. Precisamos lembrar dos atentados a bomba que vitimaram inclusive, ou principalmente, civis inocentes; os “justiçamentos” de correligionários que, supostamente ou não, haviam se passado para o inimigo; os julgamentos sumários de prisioneiros, ou inimigos, que chegaram a ser condenados (onde uma única pessoa serviu de promotor, juiz e algoz) à morte e executados com requintes de crueldade; assaltos a mão armada a bancos e residências com vítimas; etc.... Acho que está mais que na hora de pensarmos no futuro do país que, no momento, não parece tão promissor, assim. Que se registre o que aconteceu de ruim como uma lição aprendida a não ser repetida jamais. O que passou já teve o devido tratamento institucional. Precisamos deixar um país melhor para os nossos filhos e netos. Ficar remoendo o passado com viés unilateral não vai ajudar. Sou neto de exilado. Meu pai e meu avô pegaram em armas para combater uma ditadura. Não vivi esse tempo, mas sei o que isto representa para uma família a para aqueles que se envolvem diretamente no combate. O foco tem de ser construtivo e equilibrado.

Catilógenes de Amores Piva - 10/04/2014 (16:04)

Perfeito, perfeito velho Galindo. Escreve bem, sr. sacana... Parabéns.