Missas.
O escritor Hélio Pólvora certa vez me disse a história deve ser contada quando suas marcas e detalhes estão frescos.
Com isso ela se torna autêntica, quase notícia. Hemingwayanamente, eu completaria. Deve saber o Hélio, pois por muitos anos trabalhou e penso ainda trabalha com grandes jornais.
Mas nem sempre a regra é seguida, algumas histórias são relembradas anos após. Muitos anos até.
Todavia penso há certa metodologia disparadora, a nos fazer recordar fatos, com a clareza da vidraça polida.
Ontem me atrasei e acabei não indo à missa de Sétimo Dia do pai de grande amigo. São Paulo infelizmente tem disso e com protestos pelas ruas quase que diários, pouco a fazer, a não ser desculpar-se.
Porém lembrei de um continho desconfio (sem certeza) checóviano, sem recordar o título.
Algo com missas.
A matriarca da abastada família da distante (seria?) Kiriav de tempos em tempos ia à missa na bonita capela ortodoxa do vilarejo. Avisava às lacaias pedirem ao cocheiro estar preparado, seria às 18:00.
Subia a senhora aos seus aposentos e com a ajuda de uma das moças pesquisava e por fim escolhia a indumentária correta, avaliando cores, temperaturas e discretamente indagando sem esperar respostas, se alguém presente às missas anteriores talvez já a tivesse visto em tal combinação.
Intermitentemente olhava seu discreto relógio ao lado da cama, a acompanhar o tempo até a saída.
Após as roupas devidamente provadas e por fim trajadas, passava a preparar os cabelos e o rosto, com pós e tinturas uma parente moradora em Moscou trouxera de Paris. Com inúmeras olhadelas ao espelho, a girar a face de lado a outro. Verificando a composição, quase como o artista-pintor.
No frio o cocheiro ( de alcunha Negov, talvez?) aguardava, as moças se aqueciam na cozinha, furtando pequenas doses de chá do portentoso samovar de prata.
Por fim, estava pronta.
Com elegância a rica senhora descia a escadaria, pronta para a missa, as moças e o cocheiro paramentados e prontos a levá-la à capela.
A rotineira olhada ao relógio da imensa sala e a pergunta à mais jovem e inteligente das lacaias, das horas exatas, a confirmar não estar enganada.
-“São 7:30 da noite, senhora.”
-”Hm, então a missa já acabou...”
E sem esboçar qualquer reação de constrangimento ou aborrecimento, subiu as escadas, preparou-se para o jantar com roupas mais simples e após o repasto recolheu-se.
As lacaias e o cocheiro conheciam a questão, haviam se acostumado a esse “ir à missa não indo” e acompanhavam a seqüência, como joguete lúdico.
Pelo que entendi do conto, a questão da senhora era o prazer de embelezar-se e preparar-se para o evento, dos poucos havia no vilarejo. Porém não ir, ou apenas raramente, pois não a interessava a questão em si. A capela fria, os mujiques simplórios rezando baixo, o soturno padre, não agradavam.
A preparação era o gozo, como explicou em outros escritos o checóviano contemporâneo S. Freud; a finalização era rejeitada.
Diria alguém: somos assim.
E somos mesmo.