Homens duros
Por Osires Rezende, de Ipiaú, Bahia.
“Carreira de velho é trote.” Hildebrando meu pai não se cansava de nos advertir.
Então dou meus trotezinhos para que a pátria saiba que um filho seu não foge à luta.
Um jovem e eu, digamos sarado, estávamos fazendo um seqüência de alongamentos e exercícios físicos, botando a alma pela boca e apertando o orifício escatológico para que ela não se macule por ele, faço seis barras, um velhinho de 90 anos rindo-se descaradamente nos desafia: “já fizeram dez?”
Rimo-nos, e ele bravateia; “vou fazer doze em homenagem a vocês”; gargalhamos incrédulos e ele faz mais de doze, só para porque a sua filha, uma senhora de uns 70 anos lhe pede, então eu digo: “senhora, poste no youtube se não vão dizer que sou mentiroso.”
As filas consumistas do supermercado emperrengadas, caras emburradas, aflitas, insatisfeitas, inclusive a minha, só um velhinho espigado, lépido, chapéu de sambista, face plácida e risonha, pontifica mais do que uma guriatã cantadeira.
”Não adianta pressa... eu não tenho pressa nem para morrer...”; isto me acalma, rio e tento entabular uma conversa, mas o velhinho é como o sonho de consumo dos psiquiatras; um ente autofalante.
“Quer saber o segredo de uma vida longa? É trabalhar duro, não beber muito, não fumar, não mentir e não ter pressa...eu fiquei órfão com dez anos, morei na rua, tive pouco estudo, criei meu irmão, lá em casa são nove mulheres, minha esposa e oito filhas, eu digo a elas: eu tenho que ouvir o que vocês dizem mas não sou obrigado a engolir o que vocês querem, fui vendedor de carros, de fusca por que no meu tempo só tinha fusca, só vendedor de livro conversa mais do que eu, minha filha caçula quer comprar um carro e me perguntou qual a melhor marca, eu digo é zero quilometro se você tiver dinheiro para comprar a melhor marca; compre se não o resto é tudo igual, eu tenho carro, vim comprar aqui porque é mais barato, mas vim de ônibus porque não pago a passagem se viesse de carro ficava mais caro...”
Bom, nessas alturas eu já estou torcendo para que a fila não ande e depois de umas três tentativas consigo pedir: “dê uns conselhos aqui para o meu filho que fica enrolando para fazer as lições de casa”. Ele dá um carinhoso tapa no ombro de Luis e não consegue forjar uma expressão severa, então ordena peremptório: “você vai fazer o seguinte: pegue uma folha de papel e faça um CARDÁPIO, tantos minutos para a lição de história, tantos minutos para a lição de matemática, tantos minutos para o lanche, você vai aprender e vai sobrar tempo demais para você brincar, mas não pode é deixar de fazer a lição e estudar.”
Insinuo política, religião e futebol, mas não sei se ele processa, porque vai falando aos borbotões sobre o que lhe dá na cabeça, aí eu digo: “o senhor é um homem sábio.” É a única vez que ele põe uma expressão entre severa e desconfiada na cara: “tem muita gente mais sabida do que eu por aí apenas não conversam igual a eu, meu nome é Hartmann, você sabe o que significa?”.
Lembro-me de um padre de Jorge Amado e chuto: “é homem martelo?” ele diz; “quase acertou, significa homem duro, mas meus pais foram burros, Hartmann com dois enes é alemão, com um ene só é judeu, deviam ter me registrado com um ene só; eu virava judeu e seria rico, me registraram com dois enes e eu sou um brasileiro pobre.”
Ele paga suas compras e se manda gingando e gargalhando.