O Carnaval politicamente correto.
Por Osires Rezende, de Ipiaú, Bahia.
Eruditos já viram os excessos do carnaval atual como heranças das safadezas dos antigos atenienses, quando festejavam o bode Baco, era coisa natural; para exaltar a chegada da primavera os notáveis festeiros de Atenas patrocinavam “blocos” festivos que saiam pelas ruas de Atenas cantando canções fesceninas, embora Houaiss me informe que este gênero nasceu na Etrúria tempos depois, o certo é que os antigos atenienses saiam pelas ruas, bebendo vinho, encenando sacanagens, carregando falos estilizados e homenageando o deus Baco que tinha a forma de um bode fodedor.
Hildebrando, Julival Ferrari e Odilon Costa eram os festeiros da Ipiaú da minha infância, individualmente eram figuraças, juntos eram magníficos e num carnaval memorável eles patrocinaram as “pranchas” de Renatão. É o diabo! Só de saudade me sirvo de caprichada dose, só poetas sinalizados pelas musas, um Euclides Neto, um Jorge Amado, um Fernando Lona para dizer-lhes com a devida propriedade das “pranchas” de Renatão.
Renatão, maravilhozérrima figura humana, patrimônio material e imaterial de Ubaitaba, antiga Itapira, os saudosos Miguel Tannus, Zé Vermelho e tantos outros atestavam, rindo-se descaradamente que ele deflorou umas duas ou três gerações de circunspectos itapirenses e ubaitabenses. Anos mais tarde precisei pernoitar em Ubaitaba e meu tio Hugobaldo me recomendou o hotel de Renatão, mas me advertiu; “cuidado, Renatão é um cabra meio atrapaido.”
Era um casarão um tanto sombrio e quando me apresentei como filho de Hildebrando ele desdobrou-se em solicitudes, tomamos umas cervejas, debatemos Jorge Amado, política, o preço do cacau e nossas mazelas em geral e ele me garantiu:
“O seu pai, Julival e Odilon são verdadeiros mecenas protetores do esporte, das artes e da cultura em geral”, depois ele fez questão de conduzir-me até o quarto para dar uma revisada e ver se lençóis e travesseiros estavam a meu contento, sem terceiras intenções, recatada leitora.
As “pranchas” eram caminhões com as carrocerias estilizadas com bucólicos cenários onde Apolos, Sátiros, Ninfas, Odaliscas, jovens mancebos e donzelas da sociedade deslumbravam-nos com seus incontestados atributos físicos e espirituais, numa das “pranchas” o próprio Renatão posava de nobre ou deus romano, gordão com uma incólume toga e a cabeça cingida com uma coroa de folhas e flores de laranjeira, empunhava um barrete dourado e distribuía galhardamente beijos para a multidão. Meu irmão Osman, que era um pouco impressionável, deslumbrou-se e comentou; “parece um papa.” Realmente um magnífico desfile que só “doidos” ou verdadeiros mecenas como meu pai, seu Dila e seu Juju conceberiam naqueles idos de precárias estradas, foi um marcante acontecimento.
Fui a um baile infantil com o meu filho e um seu colega, nestes tempos de lei seca fiquei bebericando uma garrafa d’água, me instruindo com as fantasias da criançada, um banguelo atrevido me jogou uma serpentina, devolvi-a piruetando e foi o que bastou para ele pegar no meu pé me fantasiando de confetes e serpentinas. Confesso que fiquei tentado a rodopiar pelo salão, as velhas marchinhas são deliciosas e fiquei observando as letras.
Você ta pensando que cachaça é água.
Alá! Meu Bom Alá.
Se a canoa não virar. Eu chego lá
O teu cabelo não nega. Mulata.
Me dá um dinheiro aí.
Olha a cabeleira do Zezé, será que é homem ou mulher
Será que é Maomé? Parece que é transviado
Mas isso eu não sei se ele é.
Corre, corre lambretinha
Aí não resisti e resolvi tomar uma cerveja; e fiquei matutando nesta veadagem politicamente correta, será que vai chegar o tempo em que vão expurgar estas marchinhas dos bailes infantis porque atentam contra o profeta, os gêneros e afrodescendentes?
Será que almejam ordenar os amores e as alegrias?