Objetivas Cantadas. Sobre a Função Precípua da Poesia.
Por Osires Rezende, de Ipiaú, Bahia.
O saudoso amigo Dubinha foi motorista do meu pai e de vários fazendeiros dessa região, negro, semi-alfabetizado, mas observador arguto e de inteligência brilhante. Era banguelo, as filhas dos fazendeiros exigiram e até lhe pagaram uma dentadura, mas esta o incomodava. E ele se retou, jogou-a no lixo e assumiu gloriosamente a sua banguelice.
Num magnífico fim de tarde filosofávamos num banco de uma das nossas humildes praças:
“Cai a tarde tristonha e serena
Em tranqüilo e suave langor
Despertando em meu coração
A saudade do primeiro amor
Um ruído se espalha no espaço
Nesta hora de lenta agonia
Quando o sino saudoso murmura
Badaladas da Ave Maria”
Não me recordo se era antes ou depois da Ave Maria de Schubert que a Voz da Cidade tocava esta valsa de Augusto Calheiros, dava certa coisa no meu coração e creio que no de todo mundo, pois Dubinha me olhou e ameaçou soltar um palavrão, mas conteve-se e apenas deu um profundo suspiro.
Um coronel do cacau, não declino o nome, pois ele pode ainda estar vivo e mandar seus capangas me darem umas panadas de facão, uma das nossas reservas morais, autêntico varão de Plutarco, nos cumprimentou e seguiu altivo. Aí Dubinha me informou:
- "Isto é mais treiteiro do que jegue velho. Você sabe como ele faz pra cumê empregadas, viúvas, desquitadas e até a mulher dele quando estão brigados"?
Me assustei e bradei:
- "Oxe! Sei lá".
- "Ele endurece o pau, mostra o volume por debaixo da calça e diz pras mulheres: olha só a minha situação minha cumadi, tenha dó de mim, veja como eu estou seco, tenha compaixão minha cumadi, a senhora bem que podia me dá um tiquim.”
Como o coronel era arenista e, portanto, nosso adversário político, julguei que Dubinha estava de sacanagem e protestei rindo:
-"Deixa de mentira Duba, como é que tu sabes disto"?
- "Ele mesmo que me contou e me garantiu que é tiro e queda, vá ser descarado assim lá na casa da mãe de Pantanha."
Explodimos numa gargalhada e minha simpatia e respeito pelo coronel aumentou sobremaneira, pois confesso que admiro e invejo tal objetividade epistemológica, mas a minha formação familiar, moral, estribada no catolicismo medieval da minha saudosa vovó Sinhora, não me permite tais ousadias e descarações, mas devo confessar também que a minha técnica era até mais infame, pois eu me apropriava dos versos de Lorca, Bandeira, Castro Alves e principalmente de Maiakovski:
“O teu corpo hei de amá-lo, acariciá-lo, protegê-lo, como o soldado sozinho, mutilado protege a sua única perna.”
Porém quando a garota era mais esperta, eu reconhecia que os versos eram deles, mas quando era mais burrinha, descaradamente eu dizia que eram da minha lavra e isto me rendeu empolgados tiquinhos.
Bem, quase todos os poetas reconhecem não sabem por que escrevem, é uma necessidade física, orgânica, e não sabem também com que objetivo escrevem.
Maiakovski nos fala de um ‘mandado social’, eu também não sei por que escrevo, me dá prazer, e fiel ao mandado de Maiakovski estas sérias reflexiones nutrem a longínqua pretensão de despertar-lhes o senso crítico, para através do riso superarmos o mal.
Convenhamos, isto é um tanto assustador, então relendo Os Colhões do Padre Cícero e lembrando desta bruta cantada do meu pragmático conterrâneo, considerei que aquela crônica pode prestar-se para uma sutil e elegante cantada, veja só:
Bertrand Russel afirmou realmente que a castidade é uma perversão, mas eu inventei que Hipócrates descobriu que umas fodazinhas são indispensáveis para o perfeito equilíbrio psicofísico de machos e fêmeas e se você, leitor ou leitora, for esperto e tiver brigado com o seu parceiro, pode muito bem usar deste legitimo expediente:-"olha este baiano doido escreveu uma crônica besta, mas engraçada” depois, a depender da reação, como quem não quer nada você pode aplicar; “que tal seguirmos o conselho de Hipócrates e nos reequilibrarmos física e espiritualmente?”
Bem, não sei, exerça sua safada criatividade, mas se esta croniqueta promover pelo menos uma meia dúzia de reconciliações, este futuro livro terá alcançado o seu objetivo cívico social e me sentirei profundamente gratificado.
Como soe acontecer nestes casos, meio que por acaso, descubro uma das precípuas funções da poesia.