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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

A Paleontologia dos Carvalhos

Por Silvério Duque, de Feira de Santana

No último dia 6 de junho, de 2012, completaram-se, exatamente, 100 anos do lançamento do livro "Eu", do poeta Augusto dos Anjos; um ícone, segundo o poeta e amigo Florisvaldo Mattos, que tão hábil e gentilmente, lembrou-me desta data tão importante, – talvez único –, único representante do Expressionismo na poesia brasileira, equiparando-se a grandes poetas alemães como Georg Trakl, Georg Heym e Gotfried Benn, que alcançaram fama nos começos do século passado, mas – e isto é o que impressiona –, talvez dele desconhecidos, segundo me confessa o amigo poeta.

Augusto dos Anjos representa a nossa primeira, e verdadeira, manifestação de Modernismo, ignorado irresponsavelmente pelos organizadores e ideólogos da Semana de 22. Por ser, certamente, o poeta mais singular de nossa literatura e, também, o mais editado. Porém, se assim o é, se Augusto é tão editado e comentado, se ele é dono de uma fortuna crítica invejável, o que me restaria dizer sobre este bardo paraibano? Foi por saber que nenhum jornal noticiou o fato, que nenhuma televisão se comprometeu em dizê-lo, que nem uma revista especializada lembrou-se dele, que nenhuma academia, que eu saiba, proferiu palestra sobre o assunto e por causa de toda esta maldita decadência nada inspiradora de nossa época que, de pronto, encontrei o exato assunto desta conversa sobre Augusto dos Anjos.

Nascido e morto nos trinta anos que correspondem à transição do século XIX para o século XX, Augusto dos Anjos cresceu e vivenciou muitos decadentismos, por assim dizer; muitas mudanças radicais de pensamento e atitudes, muitos estilos artísticos e literários. Segundo Antônio Houaiss2, já a partir de meados do século retrasado “a segurança do regime econômico e social da burguesia principiava a sofrer seus primeiros abalos”. De certo, as muitas contradições internacionais, as inúmeras revoluções geraram problemas, cuja Primeira Guerra Mundial (1914-1918) tornar-se-á seu ponto culminante. Vivendo vida adulta de 1900 até a sua morte, em 1914, Augusto dos Anjos coexistiu com os mais diferentes estilos literários e, respectivamente, com escritores que, além de se integrarem a estes estilos, levaram consigo uma cultura erudita de massa e seus rudimentos, como Aluísio Azevedo, que morre em 1913; Inglês de Souza, morto em 1919; Machado de Assis e Arthur Azevedo, falecidos em 1908 para citar realistas e naturalistas; além de poetas parnasianos, simbolistas, seus colegas, por assim dizer, pré-modernistas, e outros, como Coelho Neto, morto em 1934; Alberto de Oliveira, 1937; Raimundo Correia, 1911; Olavo Bilac, em 1918; Joaquim Nabuco (este, ainda, um romântico, no melhor sentido do termo), em 1910; Rui Barbosa, em 1923 e, claro, Euclides da Cunha, em 1909.

No interregno deste quadro sumário, o Brasil se encontra muito atrás, em relação à sua derivação cultural, embora a Abolição (1888) e a Proclamação da República (1889), por mais que esta última tenha saído de um golpe de estado, renderam-lhe bons resultados na política e nos mercados internacionais. Em meio a tudo isso, uma pequena e já decadente intelectualidade, últimos sinais de uma cultura erudita, ainda vive e sobrevive. Voltada muito mais para problemas filosóficos de ordem genérica do que para aspectos técnicos e matemáticos – mais comuns à sua época e ao mudo novo que, dali, formara-se – temos aqueles que representarão – perdoem-me, novamente, pelo jargão – os grandes “divisores de águas” entre a cultura clássica e o verdadeiro Modernismo, principalmente: Euclides da Cunha, e seu quase militante Os Sertões e Augusto dos Anjos que, com seu Eu, resumindo toda uma imensa problemática teleológica de um ser humano diante do mundo e da realidade e de toda a angústia que a busca pelo saber pode angariar.

No plano literário, o Brasil viveu um paradoxal anacronismo entre as muitas escolas literárias oriundas do foco europeu – principalmente o francês – que, mesclando-se e fundindo-se, acabam por não seguir a periodização do modelo e comportamento de suas matrizes, mas todas se manifestando, como disse, fora do tempo e, desta forma, produzindo, salvo o caso de nosso Parnasianismo, originalidades e personalismos como é o caso do próprio Augusto dos Anjos. Desta questão, surge um problema há muito não resolvido em relação à Escola a qual muitos inserem o bardo paraibano... o Pré-Modernismo. O grande mal do Modernismo paulista, e, até hoje, uma grande desgraça para quem se alimentou dele, foi o fato de os paulistanos se afastarem completamente de um passado que só lhes podia fazer bem. Se olharmos, só por motivo de exemplo, para os primeiros modernistas de Portugal, veremos que, praticamente, não houve abolição, pelo menos não de todo, das formas fixas, mesmo o soneto – e nem poderiam, pois, de tão enraizados estavam as língua e as tradições portuguesas nos decassílabos camonianos que é, o decassílabo, a própria expressão do pensamento e da língua lusitanas; nem, muito menos, aboliriam os grandes temas que percorrem a mentalidade humana, há séculos e séculos; é por isso, e, de certa forma, nos sirva de exemplo, que as Odes de Álvaro de Campos são tão repletas de fábricas, engrenagens e automóveis velozes, quanto de uma retórica ou de um ritmo poético tradicionalíssimos, e que estes mesmos elementos “modernos” tão contemporâneos não se fazem livres de um Virgílio ou de um Platão, tanto que estes chegam até a dividir os versos com aqueles; o próprio Fernando Pessoa era tão embriagado de Aristóteles quanto de Walt Whitman... Os portugueses, ao contrário do que reza o nosso cancioneiro piadístico, não são idiotas – muito menos no que se refere à sua literatura; eles sabiam que negar estas coisas é negar-se a si e a tudo que se podia definir como cultura; o menos que isso é caos puro e simples. Agora, se olharmos para o exemplo do Brasil, ou pelo menos o exemplo paulista que, infelizmente, impera sobre os demais, a coisa é contrária: despreza-se o passado, a tradição, a forma e mesmo a linguagem apurada, que não tinha nada deprecioso, em troca de quê? Em troca de algo que não se sustenta por si mesmo justamente por não ter onde agarrar-se. A velha tentativa de buscar uma identidade nacional, desprezando mais da metade dos elementos que constituem esta identidade, só poderia dar em nada, ou pior, numa anomalia; e o Modernismo paulista de 1922, é, em nossa Literatura, uma anomalia.

Mas se agirmos com um bom senso, diferentemente à grande maioria de críticos e professores de Literatura espalhados por aí, e não considerarmos os paulistas de 1922, como precursores de nosso movimento modernista; e por que não consideraríamos? Porque há uma geração moderna bem antes deles que, por preguiça, incompetência de nossos críticos, ou espírito de corporativismo porco, ou (o mais certo) os três juntos, não se enquadra como modernista, apenas como Pré-alguma-coisa. Ora, não conheço uma característica dita como moderna ou como oriunda dos modernistas de São Paulo, que não tenha sido usada por um Augusto dos Anjos, ou um Lima Barreto, ou mesmo um Euclides da Cunha? Mário de Andrade não foi melhor nem nunca o será em retratar a urbis caótica do que um Lima Barreto, nem um Oswald de Andrade seria capaz de trazer tanta valorização ao passado, e às tradições culturais do Brasil, mais do que foram trazidas à luz no antológico Triste fim de Policarpo Quaresma. O que é o Manifesto Antropofágico frente àquele horror que nos traga, nos devora e, ao mesmo tempo, nos apaixona e nos faz admirados nos sonetos de Augusto dos Anjos – poemas como Os doentes e As cismas do destino, presentes em Eu, são mais repletos de urbanismo e de uma linguagem inovadora do que quaisquer textos de Mário de Andrade:

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro
.

Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-rne o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade egualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!
(...)

Sobre Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, entre muitos, aponta-nos o caráter inovador – modernista – da poesia do bardo paraibano: é quando ela rompe com as muitas conveniências verbais e sociais da época, levando a uma mescla perfeita entre a beleza e o asco, entre os momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar certo prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus sonetos... isto é ser ou não ser modernista? Antropófagos, que eu saiba, foram o Raul Bopp, a Tarsila e os índios que devoraram o Frei Sardinha. Certo foi o Manuel Bandeira, que não entrou de todo nessa história. Isso sem falar nos marginalizados como Graça Aranha e Monteiro Lobato; o primeiro soube enxergar, antes de muitos, os enganos e os horrores do Fascismo e do Comunismo bem antes de suas ascensões, é só ler o Canaã; o segundo caiu no ostracismo, vitimado pelo “cooperativismo de suínos”, algo que os paulistas de 22 aventaram como ninguém, por falar a verdade mais óbvia: que aqueles trabalhos de Anita Malfatti, tão aclamados pelos seus patéticos colegas, eram, e são até hoje, uma coisa ordinária. Não obstante, Monteiro nunca disse que ela era má pintora ou que, pelo menos, não era talentosa. Há, também, as inúmeras contribuições que os Contos gauchescos de Simão Lopes Neto deram a Guimarães Rosa e ao seu Grande sertão: Veredas.

Para quem buscava a liberdade e o fim das segregações, ninguém mais negou-nos a primeira, nem nos pregou mais a segunda, do que os Modernistas paulistanos; não é à toa que, referindo-se ao Modernismo de 22, Luís Augusto Ficher2 não se acanha em dizer que “o Modernismo brasileiro, quer dizer, paulista, aquele que a gente aprendeu no colégio e hoje virou cânone obrigatório, inescapável, a ponto de excluir (da escola, dos manuais de história da literatura, portanto do horizonte prático da vida cultural) autores que não rezem por aquele catecismo – para os gaúchos é fácil ver isso, por exemplo, com o desprezo por Simões Lopes Neto, reduzido a ‘regionalista’ e, pior ainda, ‘pré-modernista’. Sem valor, portanto”. A Semana paulista de Arte Moderna, de 1922, foi o golpe de misericórdia na já moribunda cultura erudita brasileira.

Ciente de que, com ele, encerrava-se um período brilhante de toda a nossa história, foi que o poeta nascido no engenho Pau D’Arco muito bem escreveu seu soneto Debaixo do Tamarindo, onde podemos encontrar o verso que intitula este post; verso com “jogo de palavras” como, também, nos lembrou Houaiss: no primeiro sentido, o Tamarindo guarda, como bem escreveu, “o passado da flora brasileira”, porque, como indivíduo, revive a aventura biológica de sua espécie, havendo nele, como que fossilizados (a palavra paleontologia é a ciência que dos fósseis dos animais e vegetais), até os carvalhos; no segundo sentido: note-se que o poeta se chama Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos, razão porque a notação com maiúscula para indicar sua família e toda a humana metafísica que a envolve, também vítima de um decadentismo que a poesia de Augusto dos Anjos, como nenhuma outra tratou de dissecar e discernir:

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
como um vela fúnebre de cera,
chorei bilhões de vezes com a canseira
de inexorabilíssimos trabalhos.

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
guarda, como uma caixa derradeira,
o passado da Flora Brasileira
e a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
de minha vida, e a voz dos necrológios
gritar nos noticiários que morri,

voltando à pátria da homogeneidade,
abraçado com a própria Eternidade
a minha sombra a de ficar aqui!

1 – Silvério Duque: poeta, músico e professor; licenciado em Letras Vernáculas, pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Autor de O crânio dos Peixes, ( Ed MAC, 2002 ), Baladas e outros aportes de viagem, ( Edições Pirapuama, 2006 ); A pele de Esaú (Via Litterarum, 2010). Seu próximo livro, Ciranda de Sombras, está no prelo.

2 - ANJOS, Augusto dos (1884-1914). Poesia. Org. Antônio Houaiss – 3 ed. – Rio de janeiro; Agir, 1978.

3 - FICHER, Luis Augusto (1958- ). Para Fazer Diferença" (ensaios); Porto Alegre, Ed. Artes e Ofícios, 1999.

Augusto dos Anjos, poeta.

Comentários (clique para comentar)

Luziane - 04/10/2012 (19:10)

Prof. Silvério Duque é difícil esquecer suas aulas e palavras que lhe são idiossincráticas. Obrigada, Luziane.

- 04/10/2012 (14:10)

Formidável! Uma aula completa!

Erilaine Perez da Silveira - 04/10/2012 (14:10)

Uma bela aula, não só de literatura, mas de história... Em tempos de decadência do conhecimento, uma felicidade que exista alguém como Silvério...(ao menos para nós que apreciamos as artes).

- 04/10/2012 (11:10)

Boa aula de literatura.