Tia Valda
Por Denise Teixeira, de Ipiaú.
A morte ronda a vida da gente depois dos cinquenta. É angústia desde sempre, alguns experimentam muito cedo, mas quando pessoas mais velhas que fizeram parte da sua infância começam a ir, o corpo sinaliza e começamos a temê-la com mais frequência. Os sonhos de morte são recorrentes e uma tristeza inexplicável nos toma mais do que desejamos.
Na quinta morreu uma pessoa querida, 92 anos, tia Valda. Não sei quem queria ou quer mais bem: se eu a ela ou ela a mim. Era bem querer antigo, de 55 anos atrás, quando nasci. Amiga-irmã de minha mãe, tia de coração. Lembro dela quando eu ainda era muito pequena e fugia para sua casa de muitos filhos. A mesa cheia, eu chegava, menina conversadeira, e todos me tinham carinho. Certa vez, ganhei até um sapatinho alto de número pequeno, da loja da família parede comum a casa, era a loja do pai, senhor Zezinho.
Víamo-nos raramente, mas bastava um encontro para o afeto profundo reviver com o frescor de quem convive sempre.
Tia Valda era o avesso da mulher padrão da época. Contemporânea? Não, era atemporal. Pensava, refletia, não se submetia aos modismos sociais. Era do trabalho, da dignidade, do cuidar da prole numerosa com firmeza e sem pieguices. Era também da alegria. Com os sete filhos na idade de se preparar para a faculdade, surge a necessidade de casa em Salvador. Um apartamento de dois quartos vai acomodar não só a família grande como também filhas de amigos que precisam de moradia para estudar. A solidariedade era sua ética.
Ainda muito jovem sofreu um acidente que a aprisionou durante um ano numa cama. Cuidada pelos filhos, principalmente por Vanda, filha amiga, sobreviveu levando consigo uma limitação física que não a impediu de viver até os 92 anos. Ao contrário, sua imagem transparecia serenidade, força e beleza. Trazia consigo a intensa vontade de conviver, de compartilhar os momentos importantes da família. Viajava horas de avião ou carro para participar de casamento de neto ou homenagem a um filho. Incansável. Sempre discreta. Elegância, distinção e gentileza eram inatas, nada de Socila (antiga escola de etiquetas para moças baianas). Sua opinião sobre o mundo eram escutados sem contestação, era oráculo por experiência de vida, sabedoria. Nada de adivinhação.
No trabalho, era perfeccionista, obstinada, não sabia fazer diferente. Os bordados alvos, precisos, vazando bainhas abertas em tecidos rústicos, transformava-os em rendas, construía obras de arte. Os doces de figo e leite impecáveis me foram presenteados cada vez que a visitei. Seus feitos falavam por ela, nada de autoelogio.
No auge do cacau, quando o fruto valia ouro não se contaminou com os excessos advindos dessa lavoura, se manteve com a mesma sobriedade. Sempre a mesma dona Valda escutada por todos.
Quando perdeu seu companheiro e amor de décadas, em luto, passou uma temporada conosco em São Paulo acompanhada de minha mãe que queria ajudá-la nesse momento difícil. Não escutei uma lamentação, sua dor aparecia quando recordava os bons momentos do seu casamento. Presença adorável, disputada por todos. Marido e filhos adotaram tia Valda.
Cinco de abril de 2000, ela fazia 80 anos. No mesmo dia meu pai faleceu. Nos visitou e chorando disse: - "Preciso ir a festa, a família preparou grande comemoração, mas meu coração está sofrendo".
Amiga a toda prova. Divergências políticas não abalaram suas convicções de afeto, sabia em quem confiar.
Sabia querer bem, assim, amada por todos.
Obrigada pela presença nas nossas vidas. Saudades de você.