Foto do Hermógenes

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

14 de agosto de 1894

E lembrei da avó, já falecida faz 24 anos ou próximo disso. Nascida em 14 de agosto de 1894, morreu, se não me engano, em 8 de setembro de 1988, 94 anos mais velha. Autônoma por completo até os 90 anos, quando recordo organizou pequena festa em hotel de sua cidade, o prato inesquecível javali com molho de vinho tinto e Spätzle (pequenos nacos de massa, parecendo pardais).

O curioso (e útil) presente recebia quando menino, era o “privilégio” de ir visitá-la pela gelada Alemanha, em nossas longas férias escolares de verão daqui.

Boa criatura, apesar de curtida pela vida. Às vezes, o clima duro molda não só o ambiente, como também as pessoas nele vivem. E não só organicamente, também a alma passa pelo processo. E minha avó, meus pais, a tia, primos e primas, talvez até esse ignóbil escriba sejam fruto dos ventos frios das planícies da Baixa Saxônia.

Aos 27 – 28 anos, ainda rara solteira, a avó com alguma inquietação parece atiçou os ímpetos seus e de boa amiga, e aconselhadas a procurar melhores empregos na Renânia por pastor amigo, foram parar em Colônia.

Lá conseguiram os empregos, minha avó como babá de robusto meninote. E os vizinhos, turma já mais abastada, por volta de 1920-22 eram família de comerciantes de tecidos. Seus filhos, dois rapazes, ambos estudantes de medicina, Ernst e Erich.

O mais jovem, o Ernst, com 16 anos ensaiou audaciosa aproximação ginecológica, romântica e bem sucedida na moça. Ela do alto dos seus 28 anos, incauta, depois de algum tempo percebeu não estava engordando por excesso de alimentos.

Confirmada a gravidez, a precavida mãe do rapaz, vendo o envolvimento imoral do muito jovem e mulher mais velha, e simplória, pediu a vizinha desse jeito.

Imagine-se isso em Alemanha apuritanada ou ortodoxa em 1922.

Pois então ficou vovó sem emprego e nasceu o rebento da união, meu pai. Bastardo, como se dizia antigamente.

A ainda jovem Erna retornou a seu canto de origem, em longa viagem de trem.

Acolhida pelo pai, porém escorraçada pelos demais do vilarejo diante do tropeço moral, quando o meninote estava pronto para o ginásio, conseguiu emprego (por onde trabalhou até a aposentadoria aos 65 anos) em fábrica de latas na cidade próxima maior.

Sua vida resumia-se a esse filho. Literalmente forçou a barra, induzindo quase obrigando a ser aquilo chamamos de excelente aluno. E diante da origem incerta principalmente em épocas nazistas, apesar de jurar mentindo às autoridades o pai ser desconhecido e o menino produto de estupro, sugeriu a ele procurar o canto ironicamente mais seguro às perseguições: a tal Luftwaffe, onde se formou oficial, chegando a tenente-comandante.

Primeiro pelo sul da França na batalha contra a Inglaterra e após, na Noruega. Terminado o cataclisma, retornou à sua destruída cidade, após 4 meses prisioneiro dos ingleses e devidamente "desnazificado", como imaginava-se bobo e bizarro processo inventado à época.

Nesse ínterim, a já madura senhora passara à, ironia, supervisora de produção de latas para alimentos na Continental Can, filial da matriz americana, confiscada pelos nazistas e retornada após a guerra. Durante o terrível conflito sofrera muito, perdendo o pequeno apartamento para bombardeios americanos.

E o útero, para o câncer.

Operada com “meia anestesia” como me descreveu já velhinha, durante raid em hospital-bunker, lembrando do cheiro de clorofórmio e o pó caindo do teto a cada bomba detonada.

Mas o vigor permaneceu, grata pelo seu menino adorado ter sobrevivido à guerra. E esse, ao imaginar o que fazer para trabalhar e progredir, ouviu da mãe: disso cuido eu, vá estudar, será o primeiro daquele miserável vilarejo com curso superior. A pessoal vingança pelos maus tratos a ela, mãe solteira na pudica região.

Obediente, formou-se engenheiro, ainda emendou com um ano em Cambridge na terra dos ex-inimigos. No retorno, o bom emprego em empresa para comércio de cereais e equipamentos de Hamburgo, grande compradora de café e vendedora de geradores diesel, como gerente da nova filial em certa cidade, jamais antes havia ouvido falar : São Paulo, no inimaginavelmente distante e desconhecido Brasil.

Todavia a saúde do menino era frágil, apesar de sobreviver a três abates aéreos na louca experiência da guerra. Aos 56 anos em 1980, deitado assistindo ao nefasto Jornal Nacional, expirou definitivamente, já era seu quarto e foi derradeiro enfarto.

Em contraponto à qualquer imaginável tristeza pelo ato, a velha senhora comentou algo como, “isso é a vida e o sempre triste fim dela, porém nada mais podemos fazer, a não ser viver”. E sobreviveu a mais oito anos.

Tutelada à distância pela nora e de próximo pela neta, lá pela Alemanha.

Nos seus 90 anos e festa, conheceu a primeira bisneta, robusta ainda era o suficiente a carregar a pequena de 1 ano. Fez papinhas e disse a mim: “bela filha, é forte, isso é bom, come bem”.

Porém o dente do tempo nos corrói todos (penso era uma de suas frases “goethianas” preferidas, orgulhava-se de ter lido Schiller e Goethe, apesar de “não ter muito estudo”) e necessitou de cuidados, internada em lar de idosos.

Todavia a situação agravou-se, entrou em estado de delírio e após descontrolado desentendimento com jovens enfermeiros que ajudavam, acusando todos serem da Gestapo (isso 45 anos após aquela maluca questão), entregou a alma.

Curiosamente todo o ritual de cremação e onde depositar a urna, havia sido organizado por ela. E um teatral com frases pomposas testamento, nos doando ações da Volkswagen recebera presenteadas do filho durante 40 anos.

De tempos em tempos penso nela, na formidável salada de arenque que fazia. E ao contrário do filho que nos proibiu a tevê até a adolescência, nas temporadas por lá era liberado por ela. Fazia questão de me levar sempre ao Stadt-Theater, onde lembro de ter assistido e adorado “Meu amigo Hardy”. E a culto na catedral evangélica de Braunschweig, com coro assustador porém magnético na véspera de Natal.

Mas implacável, fazia questão eu fosse à escola por lá, mesmo em férias por cá. E sem choro, com certa bengala gelada enfiava por baixo das minhas cobertas, me acordava 6:30, pois as aulas iniciavam às 7:20.

Inverno, menos 20 graus. Para o brazuca, complicado.

O horário ficou cravado nos meus neurônios. Já envelhecendo, terminada a temporada de levar os 4 filhos para escola, sonhando em dormir um tantinho mais, o “despertador da vovó” e a imaginária bengala gelada permanecem funcionando.

Pois é, os anos seguem. Em algum momento lembro dela e seu aniversário, a elucubrar já era moça de 18 anos quando o Titanic afundou.

Saudades deles, pai e vovó, temos isso.

Somos assim.

1 Caminhando como filho em 1930 pelas ruas de Braunschweig. A avó Erna Anna Minna, nascida em 1894.

2 Mais jovem, talvez 1920 com 24 ou 25 anos. Foto para algum documento, uma verdadeira especialidade alemã. Os malditos "Papiere"...

3 Verão de 1944 na Noruega, querra já perdida mas sustentada por propaganda implacável, seu filho sorri para a câmera.

Comentários (clique para comentar)

- 22/08/2012 (14:08)

Resgatando as origens...