Tempos passados, bons (e assustadores)
Quando amigo nos presenteia com livro, a mim, leitor não compulsivo mas freqüentemente ocupado do ato, deixa em eterna dívida. E em se tratando de obra escolhida com esmero, o débito se torna gigantesco. O “1808” que F. Taborda me passou é boa obra, das melhores. Agradeço novamente, agora lida.
Não é à toa listada como a mais vendida, de tempos para cá.
Escrita com dinâmica jornalística, e menos literária, põe a história da viagem de D. João VI no contexto cultural, geográfico e antropológico da época a qual, se observada com mais acribia, poderemos hoje ver as marcas ainda ao nosso redor.
Do Laurentino Gomes (o estilo jornalístico deve ser fruto de suas ocupações na Editora Abril), Editora Planeta, 2007.
Bem ilustrado, com alguns belíssimos aportes pictóricos de volumes da extraordinária coleção de livros de José Midlin.
Com Jean Baptiste Debret, esse o qual de maneira, digamos, limpa retratou o Brasil de então, talvez a agradar a nobreza portuguesa que o contratou, seguido de Henry Chamberlain e Spix & Martius.
Laurentino coloca os fatos com conteúdo claro, sem enevoados cenários históricos incompreensíveis aos menos entendidos, como eu. Mostra que a decisão de João VI é motivada em parte por medo, puro, de ir parar nas mãos das tropas de Junot e seu chefão, o Napoleão. E talvez mantida, após a chegada ao Brasil, a encantar-se com o rincão; resistindo voltar, tanto que em 1809 os franceses já haviam se mandado da “terrinha”, mas Joãozito Comedor-de-Frangos esticou o retorno até 1821.
Pelo visto era fã do Rio de Janeiro (quem não é?): a liberdade e distância das opressoras cortes européias, com a manutenção rigorosa, por aqui de saudável distância de sua pouco amada ex-esposa Carlota Joaquina.
O autor, com justiça ao título, discorre mais sobre a época, costumes, escravidão e por aí vai. Dos nobres diz menos, personalidades pelo visto um tanto vazias, de uma nação já decadente a viver de sua única colônia “rica”, o Brasil.
Terminado o livro, curiosamente e novamente fui a um ponto onde se concentram certos resquícios da época retratada em "1808", aqui por São Paulo: na Fazenda do Pinhal, em São Carlos.
Fim-de-semana corajoso, a levar a sogra e sua co-sogra, minha mãe, para um longo passeio, com rebuscados pernoites em delicados lençóis, nos quartos da reformada casa-grande.
A antiga senzala desta sesmaria a possuir mais de 70.000 hectares nos idos de 1790, hoje é fino local de refeições, requintado na decoração, com mesas e buffets culinários que fazem corar, a imaginar-se o que lá ocorria por volta de 120 anos atrás.
Não pude deixar de maldosamente brincar com a sogra, a dizer que o local é coalhado de almas penadas, dos maldosos feitores que maltratavam os indefesos escravos. E recomendei concentrar-se, pela noite, a ouvir o arrastar de correntes daqueles que jamais foram libertados, por mortos ou morridos escravos. E que por debaixo da mesa coberta com finos panos, surgiria a cintilante mão esquálida de uma criança negra, a pedir um tantinho de pão, para tolerar melhor a eterna jornada de 5 da manhã às 10 da noite com folgas aos domingos; à tarde.
Olhou-me como sogras olham genros.
Brincadeiras à parte, o Brasil colônia está marcado neste local, pouco mudado. Excetuada a remoção discreta do que remonta à escravidão. Quem tiver curiosidade, deve lá ir.
É muito bonito; e um pouquinho assustador.
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