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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

O cúmulo do esquecimento(*)

Por Galindo Luma, de Salvador.

Não me encontro nessa situação pela velocidade do tempo. Desde pequeno já era assim. Minha mãe diz que eu esquecia cadernos e livros na escola; que saía para jogar bola e voltava sem a camisa; que os brinquedos que levava para o clube não retornavam. E meu pai dizia: - tenha calma com o pirralho, quando crescer ele melhora. Mas com o passar do tempo o hábito de esquecer as coisas foi piorando até chegar num estágio preocupante que culminou com o caso grave que vocês vão conhecer no final dessa arenga.

No livro "Memórias de minhas putas tristes" o protagonista de Gabriel Garcia Marques, que deve ser ele mesmo, diz que aos 90 anos ainda consegue lembrar o nome e a fisionomia de mais de 50 amigos. Ele só não sabe combinar os nomes com os donos. Minha situação é muito pior do que a do ilustre colombiano. Muitas vezes não consigo identificar a pessoa que conheço, vá lá o nome do pobre coitado. Daí eu chamar homens "desconhecidos" de macho, bonito, cara, camarada, chefe, mestre, figura. Com o sexo feminino sempre me dirijo a elas bem delicadamente: - tudo bem querida, quanto tempo não te vejo? São todas queridas, e assim, administro para não causar mal estar. Alguns falam: - você se lembra de mim? - Mas é claro? - De onde? Na maioria das vezes consigo contornar essas situações constrangedoras, mas é necessário ter criatividade, o que compensa minha grave fragilidade.

Para vocês se situarem, vou citar algumas experiências que raramente se vê na praça. Elas aconteceram comigo, homem de poucos recursos materiais, intelectuais, físicos, estéticos e de memória. Estava eu num clube uma vez e um amigo chegou e disse: - aquele Astra preto é seu? - Sim. - É que ele está ligado e com a porta aberta. Esse tipo de esquecimento já ocorreu outras vezes na porta de casa, do trabalho, na praia. As pessoas ficam espantadas quando vêem isso, e eu já estou acostumado. Quando morei em Minas, cheguei ao ponto de ir trabalhar de carro e voltar pra casa de táxi. O carro ficou na garagem e não me lembrei que tinha ido motorizado.

Se eu for fazer um balanço dos objetos e documentos que perdi, suponho que somariam valores que dariam uma boa poupança. Eu já perdi dezenas de celulares, mas um dia o caso foi mais grave. Depois de esquecer o infeliz em algum canto, fui ao shopping e imediatamente comprei outro. Pois quando cheguei em casa esse outro já tinha desaparecido tambem. No outro dia de manhã voltei ao shopping e fiz a compra de novo. E este novo sumiu em poucos momentos. Foram três aparelhos em dois dias. É mole?

Chaves de carro, documentos, carteiras, pastas, envelopes, tudo desaparece numa facilidade impressionante. Se estou com dois objetos na mão, a possibilidade de um não chegar em casa é de 100%. Um dos piores esquecimentos que tive foi comprar três quilos de peixe e esquecê-los no carro. Viajei e quatro dias depois, o carro era uma carniça pura - tive de vender. Na maioria das vezes que faço compra em delicatessen, farmácia, livraria etc, assim que termino de pagar, vou embora sem levar a mercadoria. Outro dia na academia uma funcionária me apresentou 10 óculos lá esquecidos. Eram todos meus. Falar em academia, além da mensalidade, tenho um despesa maior que esta. É a luva, que perco em média umas quatro por mês.

Eu sou tão esquecido, mas tão esquecido, que uma vez eu me esqueci que me lembrei e quando eu me lembrei que tinha esquecido, esqueci o que tinha lembrado. Entendeu?

Eu teria centenas de casos de perdas de objetos, mas quero me deter àquele que falei no início de nossa conversa. Antes disso, lembrar que quando minha filha era pequena e ficava comigo, ela gostava muito de ir para aqueles parquinhos de shoppings. Eu ia, ficava tomando chopp enquanto ela se divertia. Numa dessas vezes, quando estava em casa vendo Bruna Surfistinha, meu telefone toca: - Alô, o senhor seria o pai de uma menina chamada Luma Galindo? - Sou eu mesmo, algum problema com ela? - Sim, um pequeno problema, o senhor a esqueceu aqui no shopping e nós já estamos fechando. Fui lá e encontrei a pobre criatura chorando nas mãos de uns vigilantes, que inexplicavelmente me olharam com ar de reprovação. Isso é que dá morar num país onde as pessoas não respeitam os portadores de necessidades especiais.

Antes ainda, e este caso é muito semelhante ao último, registro, me lembro de uma ligação no trabalho vindo de um vizinho de apartamento: - Você é o Galindoluma? - Sim. - Eu sou seu vizinho. - E porque não marcamos uma cerveja pra essa apresentação? - isso não. É que tem um problema aqui. Uma mulher está gritando por socorro pela janela de seu apartamento. - E como ela entrou lá? Ela me deu seu telefone e disse que dormiu consigo e que você a esqueceu lá com a porta trancada. Amigas, eu disse ao chefe que minha filha passou mal na escola e fui picado libertar a pobre menina do cativeiro.

É senso comum que boa parte dos homens e mulheres livres gostam de diversificar seus parceiros de cama, sofá e rede. Eles são devotos da teoria do poliamor, aquela que se sustenta na tese de que se gostamos de vários artistas, filmes, esportes, comidas, cidades etc, é porque podemos também gostar e desfrutar de várias companhias. Eu acho que isso faz sentido, é muito prazeroso, mas respeito os amigos e amigas que se conformam com esforços repetitivos num único ambiente caseiro. A socialite americana Candace Bushnell, famosa pelo Sex and City, me insultou uma vez numa entrevista dizendo o seguinte: " um homem que passa dos 45 anos ainda solteiro é um tipo a ser evitado. Se isso ocorre, é sinal de que algo está errado em sua cabeça, ele é um ser tão infantilizado que se tornou incapaz de estabelecer laços de afeto com outra pessoa. As mulheres costumam desconfiar desses quarentões tão disponíveis."

Eu acho que quando ela fala de algo errado em minha cabeça, é o problema da memória, pois fora isso, só a perda dos cabelos. Eu escrevi um artigo contestando as afirmações acima e discordando da tese de infantilização dos quarentões disponíveis e que eles devem ser evitados. Só estou relacionando um caso ao outro. É porque sou quarentão e não posso ser evitado, pois gosto muito de mulheres e prefiro que sejam muitas experiências, o que para mim é tudo de bom na vida. E foi nessa de eu ter esse tipo de preferência e a memória atrofiada que me envolvi numa confusão dos caraio.

Era a terceira vez que saíra com aquela morena agradável, inteligente, dinâmica - advogada ela. Inclusive nunca pensei em ser cliente dela, pois não cai bem ser roubado por alguém que já rouba nossos carinhos, isso não é justo. A grande maioria das mulheres não vai para cama na primeira noite. Acho isso uma bobagem, perda de tempo. Alguns até as aconselham a não perder tempo, pois pode não haver a segunda oportunidade. Depois daquele ritual obrigatório - bar, uísque, comida, conversas - fomos para o apartamento. Uma amiga minha fala que quando sai com um garanhão, ela própria diz: - rapaz, economize essa parte, vamos direto para sua casa. Ah, se todas fossem assim...

Quando chegamos em frente à porta de minha morada, percebi que tava tocando o CD "Trem Caipira", a música "Bachiana nº 5”, do magistral cantor e compositor Egberto Gismonti - reparem que disso não me esqueço. “Não é possível”, me veio à cabeça. Eu tenho o CD mas pensei que pudesse o vizinho ter gosto musical refinado. Fiquei parado para pensar o que fazer. - A moça da lei perguntou: - Algum problema? - Não. Senti um cheiro de maconha. "Só pode ser do vizinho", pensei. Sobre esse vizinho, o moço fuma todos os turnos e abre os trabalhos às 6h com as primeiras baforadas. A noite é quando ele está mais inspirado. Teve uma noite que já não suportava mais tanta fumaça subindo no meu refúgio que perdi a paciência. Fui na varanda e gritei para ele - Ei você aí, maconheiro, apareça na sua varanda, porra!!! Aí surgiu um negão sarado e: - estou aqui, o que você quer? - Quero um trago, amigo, pode ser?

Sobre o que o poderia estar ocorrendo no interior de meu dormitório Imaginei também que poder ser algum amigo que sempre me pede o espaço emprestado para economizar tíquete refeição, mas ele não requisitou naquela semana. Sobre o som, que eu o esqueço funcionando todos os dias, não é nenhuma novidade, mas quando rola o disco inteiro não se houve mais nada, só fica ligado o aparelho. Mas eu não tinha colocado Egberto. Que porra é essa? Sem mais hesitações passei a chave.

Leitoras, quando a porta se escancara na nossa frente, uma cena pouco convencional para quem visita uma casa pela primeira vez estava à nossa frente. Deitada no sofá, só de calcinha branca, com uma garrafa de uísque do lado, o morrão entre os dedos, Gabriela, uma bela negra pela qual eu tenho excitantes recordações, não se moveu. Se manteve segura e em tom de voz sereno disse: - Da próxima vez que você me esquecer trancafiada, pelo menos deixe comida na geladeira. Porra, já é a terceira vez e você não se emenda!!! E leve essa perua embora daqui antes que eu perca a paciência com ela.

Bem, eu só teria a dizer que minha memória é péssima, mas esse episódio nunca esquecerei. Não pelo episódio em si, mas pela perda de uma presa que estava prontinha para o acasalamento. Isso num é justo.

(*) - Galindoluma serve sopa para os mendigos da Ladeira da Independência.

1 É, às vezes o esquecimento pode ser complexo assunto...

Comentários (clique para comentar)

- 21/05/2012 (21:05)

Crônica de primeira!

- 24/04/2012 (09:04)

Criativo!