Raquel
Por Denise M. Teixeira, de Salvador.
Observando crianças próximas e seus mimos, lembrei de Raquel - entre nós, carinhosamente, Teco – nossa babá querida, sempre.
Firme, negra, dentes muito brancos, não desperdiçava palavras. O que dizia fazia sentido. Não aprendeu a ler, sonho acalentado enquanto viva. Cuidava com zelo das crianças, sem excessos, exageros, sabia a hora de ser determinada: criança precisava respeitar as pessoas, esperar sua vez, conviver entre adultos.
Beirando os oitenta, hoje mora com filha no Rio de Janeiro e vez e outra nos falamos.
Cuidar de criança exige paciência, muita paciência para ensinar cada nova habilidade e, acima de tudo, suportar os resmungos quando contrariadas, ou não atendidas de pronto e hora. Não é à toa que na França até o século XIX, as crianças abastadas eram retiradas de suas famílias de origem e criadas até sete ou oito anos nas casas dos serviçais, depois devolvidas.
A instituição babá no Brasil é algo que remete à escravidão, as amas-de- leite. Lá se vão mais de 120 anos que tal oficialmente terminou. Com seios fartos, alimentavam os pequenos e faziam todos os mimos, não podiam contrariá-los para não serem castigadas pelos patrões-donos.
Seus próprios filhos cuidados com as sobras dos aleitados por empréstmo.
As relações das babás com as crianças, hoje, ainda estão bem próximas do século XIX escravocrata. Elas não mais amamentam, mas os mimos excessivos permanecem a não enraivecer quem pouco lhes paga; os pequenos comandam antes mesmo de conhecer bem a língua, solicitam algo todo o tempo e não podem ser questionados, jamais.
São crianças retiradas do convívio dos pais, estes não suportam os “nhen, nhen” e as devolvem as cuidadoras para que tolerem as chatices, consequência dos exageros dispensadas aos chamados, equivocadamente, príncipes e princesas.
Nada mais apropriado.
As crianças não podem esperar, são entretidas todo o tempo. As brincadeiras solitárias não são permitidas, sempre alguém está incumbido da distração. Os limites são ignorados, mesmo já conhecedores de alguns riscos se jogam nas escadas, se lançam ao mar, sabendo que sempre alguém os observa e vai oupá-los do machucado.
Brincam com a paciência e com todo o tempo do adulto.
Regem a todos como pequenos déspotas. Entendem o jogo mais cedo do que imaginamos. Com certeza as babás também se cansam e devem encontrar seus meios de apaziguar as pequenas feras, com longas sessões de TV, alimentos pesados, doces.
Ninguém é de ferro.
E com isso o mimo, às vezes pesadamente endossado por pais e mães a complementar, se instala, com suas consequências.
Relendo autor baiano, encontrei certa caracterização de criança mimada curiosa, mas realista com o que conheço, como mãe:
“Mas um belo dia a vida de Ernestina mudou. A filha única do fazendeiro Raimundo se engraçou dela ao vê-la na porta da copa pedindo um punhadinho de farinha. Meninona corada, bem nutrida, com seus cinco anos de toddy, leite, queijo e manteiga à farta. Filha mimada, de caprichos satisfeitos, bonecas, mobiliazinhas, baterias de cozinha, ferrinho de engomar, pianinhos, quarto completo de brinquedos e Papai-Noel perdulário.
Menina dessas que andam fazendo beicinhos de desejo e inventando vontade para ser satisfeita pelo pai que se derrete, e a mãe pronta a atender ao menor querer: o doce antes do almoço, o - só como se me derem um sorvete -, - não quero nada disso, quero é ovo -, - não, não quero ovo, quero é... é... aquele negócio que não sei o nome... -. Menina assim.”. De Euclides Neto, em Comercinho de Poço Fundo.
Denise M. Teixeira, de Ipiaú, Bahia, arquiteta e mestre em urbanismo, mãe de quatro filhos hoje adultos.