Memórias
Estou terminando o livro de memórias “Nas peles da cebola”, do Günter Grass. O Nobel alemão é bom escritor, o livro cativante. Até para nós que a rigor pouco identificamos algumas partes do retratado, com peso na época do nazi-fascismo. A tradução é complexa, a começar pelo título que, no alemão , “Beim Häuten der Zwiebel” seria algo como “Descascando a cebola”, deixou-nos apenas as peles... é complexa a questão, admita-se; ao pé da letra o título até em alemão é estranho; seria algo na área de "Esfolando a cebola". Acho que nem por lá "esfolam" as coitadas que nos fazem chorar...
Porém o tradutor Marcelo Backes é aparentemente bem autônomo, deve ter lá sua liberdades concedidas pelo autor. Invejável.
Mas em alguns termos, me parece, a prática "tradutória" perdeu-se em exatidões exacerbadas: "Gendarmeria de campanha", simplificasse com a nossa comum "polícia do exército". Ainda a adicionar ao mesmo termo a denominação chula "cães de corrente", incompreensível. "Cães de guarda acorrentados", dá senso. Ou a esdrúxula expressão "asno de arame"; perderia menos o teor compreensível da obra se reposicionada com "magrela", como melhor entendemos a bicicleta objeto de sua frustração, em não saber utilizá-la o autor. Edição da Editora Record, 2007.
A mim de alguma forma deu curiosidade ler, pelas similaridades com a história dos pais, marchadores por mesmos tempos nos campos da insanidade provocada pelo cabo austríaco; e suas teorias etno-malucas, com milhões de mortos.
As memórias de Grass são precisas em alguns pontos, algo difusas ou confusas no tangente à questão militar vivida; sua apresentação do fato ter ele sido das Waffen-SS, as tropas de combate das famigeradas Sturm Stafetten, braço armado do partido nazista com ramificações militares e executores dos assassinatos programados de milhões de civis desarmados, para a manutenção da ” pureza da raça”, um tanto duvidosa.
Como leigo interessado diria ser mentira, usando da dureza germânica, ou liberdade literária, com mais humanidade. (E grande atrativo para a divulgação do livro); aos 16 ou 17 anos, enfim, pouco provável, no final da guerra ainda existir organização para convocação de tropas de elite. Não comenta o curioso método de tatuar o grupo sanguíneo no braço, obrigatório para os SS. Marcante demais para ser suprimido, imagino.
Há coisas lembrar bem, há coisas afirmar lembrar, há coisas diz talvez terem sido não tão bem lembradas, sem certezas.
Fala da mãe com carinho, dos tempos onde não fumava, redundantemente, e pouquíssimo do pai e irmã. Nada ou bem menos de outros parentes assim como de coleguinhas de escola. Seletivo. Um tantico altivo, discretamente. Compreensível, pelo incensamento contínuo após alcançar prestígio e a máxima laude literária, com o prêmio maior. Recomendo, assim como suas demais obras por conseqüência, (sem as ter lido, excetuado “O Linguado”).
Curiosamente, em paralelo, li ”Ecos de uma vida” do Nikolaus von Siegert, tradução de Alexander Magnus Alves Ribeiro, Editora Adler, 2005. Dos mesmos tempos insanos, das mesmas aventuras e encontros com personagens curiosos e perdidos nos ventos flagelizantes daquelas épocas.
Nikolaus porém tive o prazer de conhecer pessoalmente, a chamar meu forte, apesar de 30 anos mais velho, amigo. “Klaus Nikolaus Frantizek von Siegert”, confidenciou, seu nome completo; porém sempre suprimido.
Alemão dos Sudetos, os denominados “ doentes-do-pé da grande migração dos povos indo-germânicos”. Proto-pseudo-alemães os quais Hitler, estrangeiros como ele, incorporou ao Reich por decreto. Voávamos com planadores em Jundiaí, pelos anos setenta. Ele imigrante como meu pai, piloto inveterado, jovial, preferia a companhia de nós pós-adolescentes do que aos cinquentões, seus contemporâneos. Perdi-o de vista quando meu pai faleceu (e eu deixei de voar) e ele por alguma razão mudou-se para Rio Claro, no interior de São Paulo.
Grande amigo me presenteia com sua biografia. Modesta, de escrita sem literalices, digamos; com tradução corretíssima e apurada, um brinco. E tão cativante quanto a de Grass, acreditem. Apanhado de fatos memoráveis e pensamentos, também sobre sua grande paixão, o Brasil.
Morreu recentemente, sem antes, mais uma vez, aventurar-se pelo me dizia a razão deste país ser o melhor do mundo: suas encantadoras, belas, suaves, divinas, amorosas e sempre levemente carentes mulheres...
Seriam assim?