As bursas
Nesse fim de semana passado tive o privilégio de participar de um churrasco com cerveja em república, das antigas, tradicionais junto da ESALQ, a renomada escola de agronomia da USP, em Piracicaba, São Paulo.
A República Strunzo é ambiente alegre, comunidade de jovens a dividir despesas, amizades, estudos e festividades. Formam-se ligações permanentes, fortes ao ponto de entrelaçamentos familiares, com casamentos de membros e parentes de outros membros.
A solidariedade é transparente, o vínculo fortíssimo, mesmo após anos de saída do convívio cotidiano.
O fenômeno é mundial, com origem na Europa, por volta de 1.200, quando pobres estudantes de teologia da Escola de Sorbonne, dividiam o pouco que amealhavam em uma única bolsa (bursa em latim, bourse em francês), gerando o ato a denominção das repúblicas estudantis na Europa, como "as bursas".
Normalmente essas agregavam estudantes da mesma origem geográfica, portanto uma Bursa Silesorium era composta de estudantes da Silésia, oeste da Alemanha, estudando em Viena, por exemplo.
Sempre houve rituais de admissão, incluindo a execução de trabalhos diversos pelos novatos para os veteranos. E alguma brincadeira, com o "trote" nos jogos de introdução, e uso de boinas, chapéus, espadins e faixas.
Chegou ao Brasil evidentemente, nas repúblicas ou a "burcha", corruptela de bursa, junto aos estudantes de direito no lago São Francisco.
Em 1974 aventurei-me para a Alemanha e um amigo do meu pai recomendou-me morar em certa Korporation, um derivado mais violento das Burschenschaften (bursas alemãs, suíças e austríacas), casa de estudantes mantida por ex-alunos e contribuições, com regras, tradições e muita cerveja.
Meu pai quando estudante havia sido membro de uma delas em Braunschweig e também endossava minha estada.
Os moradores-membros eram sujeitos formidáveis, solidários e brincalhões. Um deles quase casa com minha irmã, com outros dois permaneço em contato permanente até hoje, tendo um emigrado para cá, a cuidar de uma multinacional em Minas.
Mas o "trote", aqui às vezes também violento, era algo tradicional e um tanto estranho, para mim latino-americano.
Certa prova de coragem, a lutar-se com espadas afiadíssimas, o pescoço protegido por grossa seda (a isolar as jugulares), o antebraço envolvido com couro e pequenas bolsas de areia para dissipar os golpes mais pesados, uns óculos de aço com tela protetora e seguia o que chamavam de mensur, a medida.
Um à frente do outro, ritmados por dois secundantes a isolar golpes perigosos, trocavam no bater de um 1 por segundo os golpes, em vários estágios.
Não havia ganhadores, nem perdedores. A coragem era sustentar a mensur até o fim, sem desmaiar.
Os golpes às vezes rolavam de forma errada (em princípio é possível abafá-los todos com o braço protegido com couro) e atingiam de resvalo a bochecha ou a testa.
Se mais grave, um médico estava a postos, porém a sutura era feita sem anestesia, outra prova de "coragem".
Alguns até recusavam as suturas, pediam fosse deitado um fio de cabelo na ferida, para ficar maior, levemente infectada por alguns dias.
As cicatrizes conhecidas como Schmiss (lançamento) eram e são motivo de orgulho, mostrando coragem.
A origem dessa tradição foram os duelos por dívidas ou donzelas, comuns na Idade Média. Nas bursas alemãs, austríacas e suíças mantiveram esse algo ainda brutal, mas regrado e menos feroz que o duelo, como prova de coragem.
Alguns oficiais alemães em 1945, prisioneiros de guerra, quando instados a tirar os uniformes, surpreendiam os americanos com uma faixa por cima do torso nu, de uns dois centímetros de largura com as cores das suas Verbindungen (ligações, termo carinhoso dados às corporações tipo bursa).
Proibidas durante o nazismo, pois recusaram-se aderir à maluca questão racial, em vista de milhares de estudantes judeus terem sido membros das ditas e também por rejeitaram a imbecil queima de livros.
Na verdade um acerto de Hitler com o establishment acadêmico, tendo todas suas tentativas de entrar para o sistema negadas, por insuficiência de notas.
Não permaneci por muito tempo na corporação, a saudade das palmeiras e dos sabiás foi forte, além de um risco delicado de ser incorporado ao exército por lá.
Mas as amizades ficaram.
Somos assim às vezes: corporativistas.