Todos os vinhos do Reno
Por Hélio Pólvora, de Salvador.
Um camareiro do hotel cinco estrelas em que o governo alemão me hospedou fita-me, à porta do apartamento, com expressão interrogativa em que observo um toque desafiador. Acabo de acordar e já fiz gargarejo com meia garrafa de vinho do Reno, que tiro do refrigerador. O líquido é bom, não convém desperdiçar – por isso bebo.
— Bom dia, senhor — cumprimenta o camareiro.
Arranha um inglês pior que o meu. Em alemão eu nada entendo da sua pesada algaravia. Estendo-lhe as duas camisas sujas, de que vou precisar nos dias seguintes. O camareiro recua um passo, sacode a cabeça em forte negativa teutônica.
— Não dá mais tempo de lavar e passar — ele grunhe.
— Eu só viajo daqui a cinco dias — informo, todo formalizado.
— O cavalheiro viaja amanhã cedo.
Digo-lhe que é engano, a minha agenda garante mais uns dias naquele hotel cinco estrelas de Sprendlingen, arredores de Frankfurt. Discutimos. E eu insisto. Ele arrebata-me as camisas e rosna:
— Já que o cavalheiro quer perdê-las...
Perdi-as. Uma era branca, de listras verticais marrons, eu gostava dela. O certo é que, no dia seguinte, antes que eu lavasse a boca com nova garrafa de vinho do Reno, interfonam da portaria: um carro está à minha espera, tenho de descer com a bagagem.
— Mas eu não viajo hoje!
— Sua conta está fechada — avisa a portaria.— É só assinar.
E assim, depois de engolir um desjejum às pressas, expulsam-me para destino ignorado. Creio que abusei do vinho, no hotel e em bares de luxo. Já estava atrevido, já exigia determinada safra. A senhora loura, de meia idade, que me servia de guia, fartava-se também às custas do erário. Talvez date daí a atual crise financeira na União Europeia.
Ainda bem que me espera um Mercedes-Benz preto, dirigido por um motorista simpático, apaixonado pelo futebol brasileiro, principalmente pelo lateral esquerdo Marinho, que foi do Botafogo carioca. Pergunto-lhe para onde me leva. “Pela Romantischestrasse”, informa. O roteiro me agrada. Estamos a caminho do sul. Afinal, um bota-fora em alto estilo. Convenço o motorista a desviar-se da estrada, a entrar em vilas e cidades, entre estas a linda Rotemburgo, medieval, amuralhada, com espumante cerveja em copázios transbordantes. O tempo é magnífico. Não tenho pressa. Penso: “A Alemanha é um jardim. Estes campos e casas saíram de ilustrações de contos de fadas dos irmãos Grimm”. Nada fora do lugar, tudo muito civilizado, limpo, distinto e culto.
Chego a Düsseldorf em excelente disposição de espírito. Se quiserem, caço o vampiro de Fritz Lang interpretado por Peter Lorre. O Mercedes reluzente para na escadaria da estação ferroviária. O motorista sai, abre o porta-malas, retira os meus pertences e os coloca num degrau. Estende-me a mão. Não me conhece direito, e está triste.
— Adeus e boa viagem — diz.
— Para onde vou?
— Para onde quiser. Aconselho München (Munique). É uma cidade alegre, fica perto da fronteira da Áustria.
Sozinho, abandonado, sem guia, sem cão. Os vinhedos do Reno, por onde me tinham levado de barco, até Mainz, até Heidelberg. onde meditei no Caminho dos Filósofos, e troquei a crítica da razão pura pela crítica da emoção pura, estavam longe. Com certeza as autoridades investigaram bem, sabiam que eu portava um talonário de cheques de viagem. Abanquei num bar, e para variar pedi um vinho do Reno, com gosto de polpa de uva.
Que teria sido de Ulisses, no retorno, sem, pelo menos, os odores das uvas que ajudou a pisar, e do vinho que envelheceu nos feudos à beira do Mediterrâneo, enquanto Penélope tecia e o cão o esperava sem saber que ao vê-lo morreria de susto? Nos transportes do vinho as buscas se aceleram. Quando dei cobro de mim, estava imerso nos nevoeiros do Báltico. Aguardava apenas uma brecha para sair do ectoplasma e me corporificar a caminho de casa.