O difícil enterro
O escrever sobre o assunto já deixa clara a complexidade da questão. Enterrar o pai é algo requer em muitos casos anos e anos. Alguns jamais o enterram.
Não escrevo do simples ato funerário.
Não.
O real enterrar de um ente importante como o próprio pai, penso ser tão penoso, a ponto alguns de fato não levarem adiante.
Mantêm-no vivo. Sempre.
Entendamos, o luto é necessário, por forma instintiva. É péssimo sentimento, nos maltrata terrivelmente, evitamos ao máximo. Até a sua possível proximidade, como visitar o moribundo, nos traz imenso desconforto.
Por isso fazemos de tudo a manter os próximos queridos vivos, com esforços às vezes de singularidade extrema, como doações de órgãos, endividamentos para tratamentos duvidosos e assim por diante.
A evitar o terrível, assustador e impensável luto.
Porém ocorrido o trágico, seria, penso, saudável negociar, usando esse termo da moda, o tal sentimento.
A não estender a ponto nos auto-infligirmos continuado sofrimento.
Certo dia o pai falecido deve ir do presente imaginário (ah, ele gostaria disso; hm, será que ele aprovaria?) ao seu lugar como, cruel dizer, morto, passado, ex.
Passei pela experiência de certo fim ultra-traumático, para mim, de luto. Assumindo o que fazia o falecido, profissionalmente, assim como certa preocupação com sua esposa (minha mãe) e a filha (minha irmã), até a confundir a elas próprias. A mantê-lo vivo, interpretando como personagem o morto.
Em determinado momento houve necessidade de Ctrl-Alt-Del, pródiga natureza a ajudar.
Reiniciar o processamento todo. E colocar-me como filho sou, irmão e pai, mas só dos meus filhos.
E finalmente saber em determinadas circunstâncias, o imaginário perfeito herói, corretíssimo oficial guerreiro, engenheiro, obediente e dedicado empregado depois adorável patrão, cometia seus erros, alguns graves.
Era neurótico como somos todos: impaciente, pai desinteressado, marido relapso. Enfim, aquilo 99% dos homens e mulheres do planeta são.
Surgiu-me como homem de fato era. Foi um alívio.
É boa lembrança em alguns casos, péssima em outros.
Está enterrado, é o ciclo.
A questão paterna é tão bizarra nos humanos, se me permitem a comparação, no momento surgem super-pais, homens hiperegocêntricos chamarem a si a tutela até de populações inteiras, transmitindo aos milhares de indivíduos a possibilidade de mágica proteção paterna, em alguns casos não há como enterrar.
Vejam o caso extremo do paizão político, Lenin, há 90 anos embalsamado em morgue envidraçada, cosmética à toda.
Está na hora de ir para a cova.
Mas não se encerra o luto coletivo, o defunto Wladimir Ylliitsch até abençoava os recém-casados.
Vai entender, mas somos assim.