Os pobres Camelots do asfalto
“Às 10h, a pista expressa da marginal Tietê permanecia parcialmente interditada no sentido Ayrton Senna, 500 metros antes da ponte Freguesia do Ó (zona norte), devido a acidente ocorrido por volta das 6h20. De acordo com a CET, a colisão envolveu caminhão e uma moto. Uma pessoa morreu e outra ficou ferida.”
Deu hoje no jornal, 28.02.2008. Deixei meu mais novo na escola e retornando por estas avenidas, naqueles horários cheias, mas não travadas, surge o imenso congestionamento. A massa metálica parada, esfumaçando: raiva dos homens, combustível dos automóveis, caminhões e motos. Lentamente a andar, evidentemente nenhum auxílio dos órgão de trânsito. Costumeiro, mundo afora. A necessitar de policiais, enfermeiros ou médicos empregados pelo estado, é raro achar. Em média, com perdões pela maldade, surgem quando não são procurados; ou necessários.
Previsível, após uma hora e dez a passar pelo local de mais um acidente; e o fim de mais uma vida.
Não estava zangado com o congestionamento; após determinada idade percebo que contemplar o desenrolar do caos urbano e a absoluta incapacidade dos órgãos ditos públicos em organizar a questão (na verdade nem há interesse...), é até divertido. Tragicômico, talvez mais trágico que cômico.
Menos divertido, porém, verificar ali, sobre o asfalto da via, bloqueada em duas pistas quase como homenagem ao falecido, jazer jovem motoqueiro, coberto em parte por uns trapos (por que cobrem os recém-mortos?).
A grande cidade em lentíssimo cortejo motorizado rendia sua involuntária homenagem ao bravo defunto cavaleiro sobre duas rodas, vítima de algum dragão-caminhão. Pela posição contorcida dos pés, algo feio. Lembrei-me de João Bosco:
“Tá lá o corpo estendido no chão, em vez de um rosto uma foto de um gol...”
São três por dia, similar à média de pilotos de caça abatidos no final da Segunda Guerra. Outros 4 a 5 se tornam mutilados definitivos. 60-70 quedas e mais de 100 “encostamentos” diários.
Idade média entre 16 (sim, muitos não tem carta. E aqui entre nós, não vale muito mesmo qualquer curso.) e 35. Depois não há mais agilidade (e coragem) para os malabarismos, a entregar encomendas por este inferno afora.
Poucos entretanto se dizem inclinados a sair daquilo. A liberdade, até em conduzir a “cabrita”, como alguns denominam a motoca, é valiosa. Desrespeitar as regras, de trânsito e boa convivência, aparentemente impagável. A conta final quem apresenta é o acidente. Não em valores. Mas em vida ou mutilação. De duas rodas ligeiras para duas rodas, lentas, sob a cadeira.
Passei em cortejo, com os demais, feliz de ter alguma lata à minha volta. Pensei; neste mundo escrevemos tanto sobre os grandes homens, porém nada sobre os pequenos, bravos, lutadores do cotidiano. Quem seria o coitado após pastel e refrigerante como café-da-manhã, desembestou entre caminhões de 12 toneladas e num erro seu, ou d´outro, virou ele mesmo massa recheada? José, João, Wellington ou Maikol? De Brasilândia, São Mateus, São Miguel ou J. Ângela? O quê faria neste fim-de-semana, nessa, sem dúvida entre as cidades de trânsito horrível, ser certeiramente das campeãs?
Epitáfio vazio, pouco a dizer. Alguém anônimo recolherá o defunto, os cacos da motocicleta; com documentos vasculhados ligarão para mais uma mãe desesperada, atônita, cujas lágrimas sairão entre balbuciados, sufocados, suspiros de “mas ele guiava tão bem...”
Quem seria?