Os riscos
Ontem no frio de Sumpa e seus 6 graus, agasalhado por aromático bléquileibel e receoso pela censura velada da companheira, assistimos juntos ao interessante Amelia, filme biográfico sobre a piloto americana Amelia Earhart e seu marido George Putnam, o grande editor de, vejam só, Putnam Books.
O papel magistralmente interpretado pela oscarizada Hilary Swank, em mimetismo quase perfeito de Amelia, até nos dentes proeminentes assim como a estatura de meninote, perde um pouco com os intragáveis Richard Gere no papel de Putnam e o péssimo Ewan McGregor como seu temporário amante, cuja estrela me é mistério. Seus papéis sejam em Star Wars ao namorado gay do chato Jim Carey jamais variam na interpretação, são absolutamente lineares (e sem graça). Porém Hollywood gosta.
A certa altura, após a segunda interrupção para meus cigarros e os telefonemas atendidos pela esposa, chegamos ao ponto do emocionante encerramento da película, a debulhar os momentos de tensão entre cenas no navio da guarda costeira gringa e seus sparks *, procurando inutilmente orientar a perdida piloto e seu navegador alcoólatra.
Esse, mesmo assim, considerado o único capaz de achar a pequena ilha para escala de reabastecimento, ao cruzar o Pacífico na procura de ser a primeira a dar ao volta ao mundo pilotando. É o melhor papel masculino do filme, interpretado pelo ótimo Christopher Eccleston. Excelente, encenando o discreto e competente cachaceiro Fred Noonan, considerado à época o melhor navegador aéreo da extinta Pan Am, por isso indicado a acompanhar Amelia.
O fim era conhecido, até hoje seu Lockheed Electra e os corpos aparentemente sumidos perto da ilhota Howland jamais foram encontrados.
Penso ter lido recentemente certa equipe do Woods Hole Institute de oceanografia, os mesmos que acharam o Titanic, andam se esforçando em esclarecer o trágico evento.
De qualquer sorte, a patroa e eu, apesar do glamour dos anos 1920 e 30 por onde viveu Amelia e sua coragem, ao término do filme concluímos quase em uníssono: ela procurou esse desfecho.
O que não censuro, admiro a coragem.
Somos covardes em 99% dos casos, é questão de sobrevivência e tranquilidade espiritual. Ninguém sai por aí a dar a volta ao mundo sozinho em barcos e aviões, quando se é empregado, mãe ou pai de família, com as infindáveis responsabilidades de levar os meninos à escola, pagar contas ou declarar o imposto.
Adoramos a aventura, entretanto como diz meu amigo E. Preto, apenas até a hora de tomar banho e assistir novelas. Ou assistir Amelia, embaixo da manta dividida.
Porém à medida amadurecemos, e provavelmente pode ter sido o caso de Amelia, nos tornamos um pouco mais indiferentes aos riscos. Ironizamos o trato politicamente correto, reconhecemos com mais naturalidade a fraqueza do outro, assim a Amelia que conviveu com os riscos a voar com navegador alcoólatra.
Tenho pensado nisso, e muito, nesses dias. Esse envelhecer burguês, evitando riscos, me irrita discretamente. Não sou único a sofrer a questão, isso ameniza.
Enfim, somos assim.
* faíscas = termo carinhoso dado aos telegrafistas ingleses, quando surgiram os sistemas sem-fio, concebidos por Marconi.