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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Incorreção política

Anos atrás escrevia para certa revista de pilotos, de título Contato, artigos sobre o cotidiano na visão do passageiro com algum conhecimento de pilotagem.

Um tanto, digamos, provocativo em alguns casos, admito. Atentos leitores, curiosamente nunca os pilotos, reclamaram em iradas cartas. E depois de uns 5 - 6 números meus artigos não foram mais publicados. Incorreção política não era assunto naquela época, nos anos 1990. Nem desejada.

A empresa quebrou, seus pilotos sairam mundo afora e a revista deixou de ser publicada.

Recordo um dos artigos se referia a certo quebra-galhos com uma peça danificada no "flap" de uma asa, depois presa com uma tira pouco especial, adesiva. Um amigo português e eu, ambos engenheiros, vimos a gambiarra sendo instalada e fomos reclamar com o comandante, assustadíssimos, que providenciou um conserto decente, porém atrasando em algumas horas nossa escala.

Relatei o fato na revista, principalmente a displicência dos mecânicos com as ferramentas especiais (jogavam ao chão virando a caixa toda e encostando escadas em partes do avião onde não era recomendado). O amigo lusitano quase não reembarca, com medo.

O presidente do sindicato desses mecânicos improvisadores e mãos-grossas retrucou por carta à revista, dizendo que "mesmo tal fato tivesse ocorrido, não haveria motivo para relatar-se em revista de algum alcance, pois denegria a classe, desnecessariamente...".

Censura sindical.

Mais adiante escrevi outro artigo, sobre a dúvida dumontiana e a primazia do primeiro vôo à propulsão.

Aos pilotos brasileiros é, digamos, discretamente corrente o fato os irmãos Wright não serem os bandidos enganadores como desejava certo modo ufanista-nacionalista por aqui. Mas em outras esferas Santos Dumont é o inventor do avião, não se discute. O artigo colocava em dúvida essa questão e ponderava os Wright de fato terem voado primeiro.

Certo chefe de escritório em Londres da maior companhia aérea brasileira à época, ultra-raivoso, enviou carta na qual escrevia o autor do artigo ser anti-brasileiro, mentiroso, etc. etc. e qualquer criança saber dos fatos...

Os editores da revista constrangidos publicaram em seu número seguinte um extenso artigo, onde um ex-militar especializado em Dumont debulhava detalhes sobre datas, concluindo também que os Wright talvez voaram primeiro, mas malandros, com ajuda de catapultas, trilhos, etc.

O que o Santos-Dumont não havia usado.

Enfim, ficou no meio-termo, a não tripudiar em demasia a credibilidade de historiadores e dos ufanistas, sempre presentes.

Aprendi muito com aquilo, lembrando-me de George Orwell e o ministério regulador dos fatos, em seu 1984. E também de outro livro, de onde claramente surge até certa óbvia frustração de Dumont com o fato dos Wright não serem exatamente desonestos, escrito por seu maior admirador, era vendido a 1 cruzeiro novo, em 1970, numa promoção por sobre uma grande lona de caminhão ao chão, no Largo São Bento em São Paulo.

Novo, o senhor que vendia dizia que o preço ínfimo era por ser coisa que ninguém queria ler...

Somos assim.

1 Comprado em 1970 por 1 NCr$, novinho. Quase dado, ninguém queria saber da verdadeira história de Dumont. Guardo até hoje. Sem data, por Peter Wikeham, Ed. Civilização Brasileira, tradução exemplar de Altino Ribeiro da Silva.

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