Caramuru - O mito de criação
Por Aurélio Schommer, de Salvador
Muitas culturas, muitos povos, têm um mito de fundação, ou criação, como se queira. Em narrativas alegóricas, repletas de metáforas e feitos heroicos, conta-se como surgiram certas nações. O mito de fundação judaico é a história de Adão e Eva. O de Roma é a dos gêmeos Rômulo e Remo. Ambos são fundamentais para a compreensão das civilizações ocidentais, embora estejam longe de ser fatos históricos, até porque nos primórdios dos povos judeu e romano não havia escrita. Consequentemente, não houve testemunhas da fundação.
Culturas e nações surgidas posteriormente, em tempo histórico, não abandonaram o hábito de criar mitos sobre suas origens, porém tomando o cuidado de acrescentar personagens reais. Jesus existiu e do relato de seu nascimento, vida e morte fundou-se o cristianismo. Carlos Magno foi de fato coroado em Roma: eis a Europa. Seus feitos, porém, estão cercados de fábulas e possivelmente nunca poderão ser de todo esclarecidos. Há História aqui, mas segue havendo mito.
Com o Brasil, não foi diferente. Já se disse que o Achamento (Descobrimento) não fundou o Brasil, pois não passou de um contato do qual não resultou obra perene nem descendência. Mas de um personagem menor, português de nome Diogo Álvares, o Caramuru, passamos todos a descender por conta do mito de criação pátrio, sacramentado a partir de narrativas dos séculos XVII e XVIII.
No mito, o tal Diogo é um fidalgo de Viana do Castelo que, em 1509, tem o azar de estar a bordo de embarcação naufragada e a sorte de, ainda assim, acabar topando, vivo, com arrecifes e tupinambás amigáveis, ou, pelo menos, para ser fiel ao relato mitológico, curiosos a ponto de não o devorarem no primeiro jantar.
A salvo entre selvagens brasilianos, na península que bem mais tarde receberia o nome de São Salvador da Bahia, ganha a confiança e a gratidão do cacique local, Taparica, que lhe dá a filha mais velha e formosa, Catarina (ou Guaibimpirá), em casamento, e a mais nova, também bela, Moema, para o desfrute.
De bem com os primeiros exploradores portugueses, mas igualmente sócio dos inimigos destes, os franceses, faz questão Diogo de mostrar a civilizada Europa à esposa oficial. Assim, Catarina, em 1528, é batizada em Saint-Malo, França, onde também recebe as bênçãos da Igreja Católica a sua união com o fidalgo vienense, traidor da pátria de origem, bem se vê, mas um bom cristão.
De volta ao Brasil, Diogo tratará de gerar vasta descendência fundadora, legítima e ilegítima, a qual dará origem às melhores famílias da terra, nobres e proprietários de grande importância no futuro da nação. Restará vivo de novo naufrágio e, em 1548, receberá carta do Rei João III. Era um pedido: deveria preparar a Vila Velha (antiga povoação onde hoje é o Farol da Barra de Salvador), seus habitantes de origem lusa e o gentio para a chegada do primeiro governador-geral do Brasil, que ali aportaria no ano seguinte.
De Tomé de Souza, o governante da América Portuguesa, Diogo Álvares recebe, como recompensa por seus préstimos, notadamente como língoa (intérprete), vasta sesmaria e bons empregos para seus genros na nascente estrutura burocrática nacional. Morre em 1557, deixando a nativa viúva, agora chamada Catarina Paraguaçu. Esta vive até 1586, devota de Nossa Senhora da Graça, imagem no altar da primeira igreja baiana, erguida justamente por Diogo em terras em que ela, Catarina, repousará eternamente, depois de legá-las em testamento aos monges beneditinos.
Relatado o principal do mito, vamos aos fatos.
É possível que Diogo Álvares tenha nascido de fato em Viana, mas não há certeza. Quanto a ser fidalgo (nobre), é muito improvável. Náufrago? Não é certo. Podia ser degredado ou deixado de propósito ali pelos franceses. A viagem à França, em 1528, até pouco tempo considerada delírio pela maioria dos historiadores, restou provada pela certidão de batismo de Catarina do Brasil, a esposa, tendo como madrinha ninguém menos que a esposa de Jacques Cartier. Quanto à descendência, também é fato a prosperidade de muitos deles, embora exagerada no mito.
No poema épico de Santa Rita Durão, de 1781, a união bilíngue de Diogo e Catarina, Caramuru e Paraguaçu, é precursora do consórcio entre os sangues luso e nativo, daí a analogia perfeita com os mais antigos e importantes mitos de criação. Ora, antes de Diogo muitos portugueses haviam sido deixados em terras brasileiras. Estes procriaram com nativas à farta, portanto o caso daquele não é singular nem fundador no sentido estrito. Mas isto não importa. Importa o mito, o que ele representa, por que foi tão reproduzido e saudado entre portugueses e brasileiros do passado remoto até nossos dias.
Há vastos significados claros e ocultos na história de Caramuru. O primeiro, óbvio, é a admissão do indígena convertido como digno de gerar descendência portuguesa, conquanto fosse o casamento abençoado pela Igreja e os filhos batizados. Tal admissão será progressivamente valorizada, cercada de mitos literários de grande repercussão (Iracema, de José de Alencar, por exemplo), como contraponto aos nativos que recusam o domínio português das novas terras, inicialmente, e, sobretudo, à incômoda presença africana, importada como mal necessário. O índio, aceito na composição da família brasileira tradicional, não será apenas branco. Será alvo, como bem diz Santa Rita Durão na descrição da cor da pele de Catarina.
A aceitação plena do cristianismo, consubstanciada na devoção de Catarina à Nossa Senhora (no mito, ela tem a visão da imagem e pede a Diogo que a encontre e resgate), é fundamental na obra de catequese, o melhor e maior pretexto para a submissão dos nativos americanos não apenas à religião, mas a toda a cultura lusa. As crenças originais da terra são apagadas do cotidiano tupi-guarani e da História.
A presença de Moema justifica a poliginia (um homem, mais de uma mulher), vastamente praticada aqui ao longo dos cinco séculos que findam em nossos dias, conquanto se tenha apenas uma esposa oficial. No poema, a irmã mais nova suicida-se por não ser levada à França para o batismo e o casamento. A culpa, é claro, é só dela.
Diogo Álvares é o fundador da malandragem, tão característica de brasileiros e portugueses, afinal é seu poder de negociação com caciques nativos, franceses e lusos, muitas vezes traindo uns para agradar a outros sem se deixar pegar em contradição, o responsável por seu sucesso, não a sua capacidade empreendedora ou a sua força bruta, sequer citadas. Engana os índios com um tiro de mosquetão, engana os franceses, engana os compatriotas, contrabandeando. Acaba se dando bem, impune. Mais: morre rico por cuidar de conseguir bons casamentos para as filhas e muitas benesses do Estado para si. Em se tratando de Brasil, soa familiar, não?
Nosso fundador mítico é um vira-lata que se faz passar por nobre. É um burlão, mas um burlão que admite o complexo de vira-lata, tanto que resolve casar na França, não no Brasil, nem em Portugal. A dignidade, a descendência nobre, só existe se for corroborada por uma nação de nobre estirpe, herdeira de Carlos Magno, rei francês, legítimo herdeiro do cristianismo e de Rômulo e Remo. Ou isso, ou seríamos todos bastardos, como os filhos de Moema.
Aurélio Schommer é autor e presidente da Câmara Bahiana do Livro.