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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Enquanto a Zé-Lite dorme... (2)

Por Olavo de Carvalho

E ainda há quem, no meio disso, acredite poder confiar nas leis e instituições, no funcionamento normal da sociedade, na sanidade do processo democrático.

A classe empresarial, os políticos pragmáticos e os analistas econômicos têm uma dificuldade quase intransponível de compreender o alcance político de modas culturais que, de início, parecem limitadas a um círculo de professores excêntricos e estudantes amalucados. Quase um século depois de Lukács, Gramsci, a Escola de Frankfurt e o próprio Stálin haverem descoberto que a cultura, e não a economia, é a força que move o processo revolucionário, esses observadores vesgos ainda acreditam que existe um abismo entre o mundo “prático” e a esfera dos interesses “abstratos”, “estratosféricos”, da intelectualidade acadêmica e artística. Estratosféricos são eles, habitantes do mundo da Lua. Quando o general Golbery do Couto e Silva inventou a teoria da “panela de pressão”, pontificando que a atividade repressiva do Estado deveria limitar-se à oposição armada, deixando as universidades e as instituições de cultura livres como válvula para o escoamento das pressões subversivas, mal sabia ele que, àquela altura, os esquerdistas mais avisados já haviam abandonado o projeto guerrilheiro e depositado todas as suas esperanças na “revolução cultural” gramsciana: a única arma de que precisavam era, precisamente, uma válvula. Ao optar implicitamente por não resistir ao comunismo em geral, mas só ao comunismo “violento”, o governo lhes forneceu essa arma. Um pouco de estudo teria bastado para mostrar ao sapientíssimo general que a “via pacífica” para o comunismo era nada mais que o adiamento da violência crua para depois da tomada do poder por meios anestésicos. Mas, no calor da luta contra as guerrilhas, a imagem de uma futura esquerda “pacífica” e “legalista” pareceu à elite militar uma alternativa roseamente desejável. Em poucos anos, essa esquerda, nascida das conversações gramscianas na USP, estava montada e em pleno funcionamento. Não houve, na “direita”, quem não celebrasse o seu advento como um formidável progresso da democracia. O general Golbery foi o pai da ascensão petista, restando apenas saber se o foi por pura presunção e ignorância ou se houve da sua parte um pouco de cegueira voluntária, alimentada por ambições nasseristas de absorver a esquerda continental num esquema militar nacionalista e anti-americano. Hoje sabemos que o esquema militar é que foi absorvido, subjugado e posto a serviço dos planos do Foro de São Paulo. Isso era perfeitamente previsível, mas não a quem alimentasse, como o general, a ilusão de poder manipular e “civilizar” o movimento comunista. A “queda” da URSS e a embriaguez triunfal dos liberais no início dos anos 90 levaram essa ilusão às últimas conseqüências, fazendo com que as “elites” (ou a Zé-Lite) celebrassem o sucesso do PT como uma promessa de melhores dias para a democracia capitalista. Frases como “o comunismo acabou” e “Lula mudou” adquiriram então o prestígio de dogmas inabaláveis, e quem sugerisse que as coisas não eram bem assim se tornava objeto de chacota da parte de banqueiros, empresários, políticos “de direita”, capitães da mídia e altos oficiais militares – a pura nata da Zé-Lite.

Hoje, quando esses senhores, de rabo entre as pernas, já entrevêem no colaboracionismo servil e trêmulo a sua única chance de sobrevivência, sinto-me até um tanto constrangido de lhes explicar, de novo, que os estrategistas da revolução comunista, por mais que lhes pareçam meros intelectuais avoados, de paletó sebento e barba por fazer, são um pouco mais espertos que eles. Um “homem prático” vive de olho nas cotações da bolsa e ri da sugestão de que algo tão abstrato e academicamente rebuscado como uma teoria literária possa ter alguma periculosidade política. O intelectual comunista aproveita-se dessa falsa sensação de segurança para fazer da teoria literária um instrumento de ação capaz de virar o mundo do avesso.

Vou contar, em linhas gerais, como isso aconteceu.

Na década de 30, Stálin estava persuadido de que a única função da arte e da literatura era a propaganda revolucionária. Parida às pressas pela Academia Soviética, a teoria estética do “realismo socialista” impregnou massas de escritores e artistas em todo o mundo comunista. Só não chegou a tornar-se um dogma universal porque, no Ocidente, Stálin reservava às celebridades das letras e artes uma função mais sutil. Queria usá-las como instrumentos de camuflagem: deviam abster-se da filiação explícita ao Partido Comunista (e portanto também às suas opções estéticas) e, conservando uma fachada de neutralidade, colocar o seu prestígio a serviço de causas específicas de interesse do Partido nos momentos decisivos. Isso deu aos escritores esquerdistas da Europa e das Américas a margem de liberdade que lhes permitiu escapar do realismo socialista e continuar fazendo literatura em sentido estrito. Por toda parte, poetas, romancistas e críticos – a começar pelo príncipe da crítica marxista, Georg Lukács em pessoa e seu fiel escudeiro Lucien Goldmann – desprezavam a estética oficial soviética e faziam a apologia dos cânones literários que construíram a grandeza de Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac e Dostoiévsky. Lukács escreveu páginas notáveis em defesa do “grande realismo burguês”, alegando que a representação fiel da realidade histórica era uma força revolucionária em si, sem necessidade de concessões à propaganda. Até em congressos do Partido a hostilidade ao realismo socialista acabava se mostrando, às vezes de maneira explosiva. Referindo-se ao chefe da escola, o nosso Graciliano Ramos exclamava: “Esse Jdanov é um cavalo.” Assim a literatura foi salva do embrutecimento ideológico. Os anos 30-50 acabaram sendo uma época de criatividade literária incomum. No Brasil, então, nem se fala. Nunca tivemos tantos escritores bons e ótimos ao mesmo tempo.

Mas foi uma salvação provisória. Aqui e ali, discretamente, intelectuais iluminados se davam conta de que a preservação dos cânones do realismo e, de modo geral, a concepção da literatura como conhecimento, eram incompatíveis com a meta escolhida pelo próprio Lukács: a destruição da civilização ocidental. Puseram-se então a trabalhar na idéia de que a literatura não podia conhecer a realidade, já que – segundo entendiam -- a própria realidade era uma invenção literária. Para dar a essa idéia um arremedo de consistência, apelaram a um formidável arsenal de recursos extraídos da língüística, da antropologia, da lógica formal, da “teoria crítica” frankfurtiana e das filosofias de Nietzsche e Heidegger. Em menos de uma década a proposta havia evoluído para a formulação radical do desconstrucionismo: não existe realidade nem conhecimento, nenhum discurso tem significado, o significado é livremente inventado por “comunidades interpretativas” que aí projetam como bem entendem seus desejos e interesses, portanto tudo o que há para fazer é reunir a comunidade e ensinar-lhe os meios de usurpar o sentido dos textos em benefício próprio.

De súbito, a doutrina de Stálin-Jdanov era restaurada em todo o esplendor da sua brutalidade, mas agora resgatada da sua pobreza teórica originária e paramentada com todos os adornos da sofisticação acadêmica. O desprezo pela verdade, a legitimação da mentira politicamente útil, o cinismo das interpretações forçadas, enfim a prostituição total das atividades intelectuais superiores aos interesses de grupos de pressão tornaram-se não só legítimos e recomendáveis, mas intelectualmente elegantes e moralmente obrigatórios. Na mesma onda, as distinções entre o verdadeiro e o falso, entre cultura e incultura, entre o esteticamente superior e inferior, foram condenadas como instrumentos de opressão e substituídas pelo culto de qualquer bobagem politicamente oportuna que se apresentasse. Toni Morrison foi igualada a Shakespeare, as novelas de Gilberto Braga celebradas como portadoras da “universalidade de um Balzac” por ser bem aceitas em todos os mercados. Considerar Bach superior a Gilberto Gil tornou-se algo assim como um crime de racismo.

Não é preciso dizer que o primeiro resultado foi a pura e simples desaparição da grande literatura. A segunda metade do século XX não gerou nada que se comparasse nem de longe a um Thomas Mann, a um Proust, a um Jacob Wassermann, a um Hermann Broch, a um Robert Musil, a um Antonio Machado, a um Bernanos, a um Mauriac. Nas nações do Terceiro Mundo, as sementes da cultura superior em gestação foram impiedosamente arrancadas. O país que cinqüenta anos atrás tinha Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Annibal M. Machado, Marques Rebelo, José Lins do Rego, agora lê Luís Fernando Veríssimo e acha o máximo.

Se os efeitos se limitassem à esfera das letras, já seriam suficientemente perversos. À retração da criatividade literária corresponde, pari passu, a degradação da linguagem pública, a progressiva incapacidade de expressar a experiência real e, conseqüentemente, a fixação dos debates em estereótipos alienados, prenunciando a ascensão da loucura geral como alternativa política.

Mas, como não poderia deixar de ser, os procedimentos interpretativos da escola desconstrucionista e similares logo foram estendidos para as ciências humanas em geral, afetando todas as esferas do debate público. Aí os efeitos foram muito além do mero sucesso propagandístico. Ampliaram-se até à destruição de todo princípio de ordem e racionalidade na vida social. Avaliar, mesmo sumariamente, a extensão do dano, ocupará muitos artigos nas próximas semanas. Vou aqui dar um único exemplo, que depois explicarei melhor.

Um dos setores onde a influência desconstrucionista penetrou mais fundo é o Direito. Aí se evidencia como uma teoria literária pode ter conseqüências devastadoras sobre toda a ordem social. Juízes, promotores e advogados são hoje formados sob a crença dominante de que as leis, como qualquer outro texto, não têm nenhum significado originário objetivamente válido. Toda significação que elas possam ter é mera projeção de fora, vinda dos setores politicamente interessados. Só o que resta portanto é organizar uma “comunidade interpretativa” e impor a sua leitura dos textos legais por meio da gritaria, da chantagem, da intimidação. De um só golpe, a Justiça inteira se transforma em instrumento de subversão revolucionária. Para virar de cabeça para baixo a ordem pública, não é preciso mudar as leis: basta inverter-lhes o sentido. Nos EUA, o alucinógeno desconstrucionista chegou até à Suprema Corte, transformando-a numa frente de combate contra a religião, os valores americanos tradicionais e a própria Constituição. Amparado em teóricos acadêmicos da reputação de Ronald Dworkin e Stanley Fish, o juiz William Brennan, ex-presidente da Suprema Corte, proclama abertamente que tentar ater-se ao significado originário da Constituição é “falsa humildade”: o verdadeiro sentido do texto constitucional tem de ser livremente inventado conforme as pressões dos grupos abortistas, feministas, gays etc. É isso o que o ex-vice-presidente Albert Gore entende por “Constituição viva”. A profundidade da subversão judicial ocorrida nos EUA já não pode ser medida. Um pequeno indício é que, em plena guerra contra o terrorismo islâmico, crianças de escola pública, em vários Estados, são obrigadas a ouvir horas e horas de louvações à religião muçulmana, sendo ao mesmo tempo proibidas de expressar em voz alta sua fé cristã, sob pena de expulsão ou de medidas policiais mais graves. É a guerra psicologica ao contrário, movida não contra o inimigo mas contra o próprio país, sob a proteção da Suprema Corte.

1 É, opinião concisa. Dura.

Comentários (clique para comentar)

- 26/07/2010 (08:07)

Nossa mãe, esse está à direita de Hitler...