Como me tornei uma feminista raivosa
Por Julia Bussius, de Gurgaon, Índia
Antes de vir para a Índia, ou mesmo agora, quando me perguntam porque vim morar por essas bandas e respondo que foi, basicamente, por causa do trabalho do marido, algumas vezes escutei (ou li no rosto da pessoa) coisas como “hum, que mulherzinha, largou o trabalho aqui e foi atrás do marido, virou dondoca”. Não com essas exatas palavras, claro, mas o sentido seria mais ou menos esse. Abstenho-me de comentários (há!).
O curioso, porém, é que nunca um lugar (ou, talvez, uma situação) tinha antes me pegado tanto na questão feminina, no simples fato de ser mulher. Para um homem estrangeiro, a Índia é uma coisa, para uma mulher, é outra totalmente diversa. Um homem ocidental poderia considerar esse um dos lugares mais seguros – em termos de criminalidade – e não chamaria muita atenção ainda que andasse nu pelas ruas. Como mulher, não tenho a menor vontade de andar sozinha (mesmo que coberta da cabeça aos pés) por nenhuma parte dessa região norte.
O problema é real. Há muito mais homens que mulheres, para começar, e isso é resultado do alto índice de infanticídio de meninas, que são mortas pelas próprias famílias logo após o nascimento. A questão é bem prática, digamos: a filha mulher é um fardo, custa o dinheiro do dote (a ser pago à família do futuro noivo), e ainda por cima não servirá para cuidar dos pais na velhice, nem para perpetuar o nome da família. A história parece fora do tempo, talvez um par de séculos, mas é a realidade dos estados do norte da Índia (assim como ocorre na China, mas pela questão do filho único).
A taxa de estupros é alta (e leve-se em conta que a maioria das vítimas não denuncia os ataques, por medo da violência ainda maior por parte da polícia). Não foram poucos os casos de amigas estrangeiras que sofreram assédio de homens indianos em plena luz do dia, sem que ninguém em volta movesse um dedo para ajudá-las. Todos recomendam: não ande sozinha, não dirija sozinha, sobretudo à noite, não viaje de trem ou ônibus sozinha, ande com um spray de pimenta na bolsa. E, de fato, vemos pouquíssimas mulheres nas ruas. Há lugares em que elas virtualmente não existem. Raras vezes estão desacompanhadas.
Talvez a situação seja parecida em alguns países árabes radicais, não posso afirmar, mas o que me impressionou foi que em nenhum dos outros países que visitamos no Sudeste Asiático senti a mesma opressão (ou até supressão?) do gênero feminino. Até na Malásia, país islâmico, as mulheres estavam por toda parte. Muitas delas com a cabeça coberta, certo, mas ainda assim andando de metrô, nas ruas, trabalhando nos restaurantes, nas lojas, fazendo parte da vida além do espaço da casa. Mas onde raios se escondem as mulheres indianas?
Alguns homens tentam justificar: “nós valorizamos muito mais a mulher do que o fazem no Ocidente. Para nós, a mulher é uma joia rara, por isso temos que deixá-la fechada dentro de casa”. Pois é. Claro que há exceções, já é possível encontrar mulheres trabalhando em alguns escritórios, frequentando a universidade, ocupando cargos no governo, trabalhando como profissionais liberais e até podendo escolher os próprios maridos. Mas é uma porção diminuta, que mal aparece nesse gigantesco mar de homens.