São João do Carneirinho
Por Ildásio Tavares, de Salvador
O Programa se chamava Essa Noite se Improvisa. Anos 60. O locutor proferia uma palavra e os candidatos premiam um botão, após o que eram obrigados a cantar uma canção com aquela palavra exatamente. O programa despertava um grande interesse e tinha uma larga audiência. Os candidatos, se acertavam, passavam por etapas sucessivas. Nas noites solitárias da TV Itapoan eu e minha mãe assistíamos sempre ao programa.
Nesta noite tínhamos a razão especial para vermos a TV. Um amigo nosso de longas datas era candidato. A palavra que o locutor deu foi “fogueira” . Ele vai acertar, disse minha mãe. E não deu outra.
Ele cantou. “A fogueira está queimando em homenagem a São João..." etc. Minha mãe exultou. Eu me lembro dele com a sanfona para cima e para baixo naquela ladeira de Ibirataia, cantando essa música.
Ele e a irmã Dina. Que fim levou ela? Está na MPB também? Não, eu disse, é dentista.
Gilberto Gil, acima de tudo uma incrível cultura musical, construída como nós ao pé do rádio mas no caso dele e de Caetano aprofundada e internalizada por uma sensibilidade fina que daria, com o tempo, uma resposta de obras primas da música nordestina no tempo em que trio era sanfona, triângulo e zabumba. Hoje é a porra toda desde a calcinha e o sutiã aos aviões de carreira aos chicletes sem banana e a embananação sem chicletes.
Lembrar que a Bossa Nova foi toda construída em cima de piano, bateria e baixo. Tudo. Depois, quando se ia ao estudio se fazia uma arranjo mais sofisticado, mas sempre elíptico, pontuando a voz do cantor que era o instrumento principal. Quem seria capaz de imaginar João Gilberto cantando com meia dúzias de tubas por detrás e uma percussão de Carlinhos Brown. Esse rapaz que detém uma inventiva extraordinária situa-se no eixo maximalista. Me disse uma vez no carro de Roberto Santana, exageradamente, que aprendera a fazer música comigo, em cima de alguns vinis, inclusive de trilha sonora da Globo. Só que eu nunca fiz tanto barulho. Queria resgatar os ritmos africanos.
Tanto barulho e pouca musica, esse esquema foi-se estendendo.
Até a ladainha de igreja. A música de São João, xote, xaxado. coco. Baião, foi virando tudo axé, tudo bagunça, arritmia, pretexto para balançar os braços e balançar o corpo. Aquela coisa gostosa, dolente, do velho Lua de suas músicas com Zé Dantas e Humberto Teixeira vai sendo tragada no sacolejo do pagode, do arrocha, do parangolé, o rebolation, esta formas sublimes dignas de Mozart e de Rachmaninov.
Toda uma cultura nordestina de pé de serra, vai desaparecendo aqui na Bahia massacrada pela música tecnológica, pela avalanche ensurdecedora de som tudo, pretextualmente a serviço do turismo, do lazer e do bem estar mas basicamente serviço da descaraterização.
"Olha pro céu meu amor
Veja como ele está lindo
Foi numa noite igual a esta
Que tu me deste teu coração
O mundo inteiro estava em festa
Era uma noite de São João."...