Somos ralos
Dizia certo velho amigo, já enterrado há tempos, em vida muitas pessoas necessitam de ralo, por onde escoem suas mágoas, maus humores, tensões, angústias e todo o lixo da alma.
Perguntei à época qual era seu ralo, ponderava talvez ser a escrita mas jamais seres viventes; e por ela, a escrita, escorriam seus momentos de alguma ambigüidade, certamente em relação a desafeto de longa data, a quem malhava com suas palavras através dos jornais.
Mas no cotidiano era de absoluta afabilidade, a todos tolerava. Até a mim, o que não é lá muito fácil, diz a patroa...
Tolerava, como escrevi, porém sutilmente criticava. Anos após sua passagem, um filho do falecido me confidenciava ao pai não era de toda desagradável minha bem rara companhia, porém havia de se relevar meu estranho modo “financista” de cuidar da vida, isso não lhe encantava, pelo contrário. Crítica post mortem curiosa...
Minha mãe no trato geral é pessoa afável, porém de alguma forma tem seus ralos, sim, algumas têm vários... Sua lida com as moças ajudam nos afazeres do lar são de certa rusticidade; e palavras duras. E com a idade e o passar dos anos a questão se acirra.
O que faz dela, de tempos em tempos, o meu ralo: quando peço a ela moderar o tom com as moças, cansados estarmos de trocar em tão curtos intervalos.
Meu pai, Manitou o tenha sob seu portentoso totem, fazia da família, próximos e distantes, todos, seu imenso ralo. Excetuada a própria mãe, com agregados ou consangüíneos era duríssimo no trato. Assustador. Em contrapartida, aos seus colegas de trabalho, sócios e amigos era de grande cortesia e generosidade; seguidamente sou confrontado com lembranças elogiosas, infelizmente comparativas.
A toda vez assisto o formidável e recomendável filme Gandhi de Richard Attenborough e revejo a cena onde o grande líder é de curta grosseria com sua esposa, lembro do meu pai e seu tom tanto duro e canhestro conosco. Sem equipará-los, é claro.
Por aqui onde trabalho, observo discretos ralos, criados e cultuados. Nos ambientes de labor a questão aparentemente se acirra. Homens adultos, ponderados, habilidosos em suas áreas mostram-se como meninos em jogos de caixas de areia. Alguns a atirar a areia aos olhos dos outros.
Não nos esquecendo dos ralos gratuitos, quando se elege o inocente ou desconhecido a suportar nosso intenso desgosto com às vezes insolúveis questões d´alma. Muito comum no serviço público, onde sempre algum pouco alegre e sempre intolerante imbecil espinafra o inocente em manobras chatas, desnecessárias e de tempos em tempos até fatais.
Ou seja, assim como os ralos caseiros, de pia, de chão, de box de chuveiro, de bidê, de quintal, nós humanos temos os nossos, em todas as cores e matizes. Até filme disto fazemos, se não me engano havia bom nacional O cheiro do ralo, ainda não assisti. E o magistral Pollock, com a tocante cena da esposa confrontada com a infidelidade do pintor e ele a procurar afastá-la com grosserias, deixa claro: eu o amo, não irei jamais, faça o que quiser.
E por último, não esquecendo: quando alguém o nomeia, enquadra e pinta como ralo, a mágoa isso cria. Por algumas vezes passei e passo (todos passamos) pela situação, e aprendi nesses casos afastar-se ser a melhor alternativa.
Um caso muito vivo recordo, no colegial, outro aluno com o qual não tinha o menor contato, de outro grupo, sujeito alto e forte, de alcunha Henrique, encostou-me numa parede e, o dedo em meu rosto, deixou claro: -“Cara, eu não gosto de você, não me pergunte a razão!”.
Não perguntei, muitos anos depois, já sisudos e mais velhos comemorando 30 anos de formatura, à mesa de umas cervejas ele se aproximou de mim e bradou: - “Você de nós todos sempre foi o mais sacana e filho da puta, o que acha disto?” a respeito de questão política se colocara antes.
Levantei e afastei-me.
Nunca mais o vi.
Ralos, também somos assim.