O velho e a água-de-barreiro
Levanta o velho ricaço, o peso dos anos e dos simbólicos muitos reais fazem-no curvar-se ao andar. Despenca na cadeira à mesa do café-da-manhã; por debaixo dos óculos meia-taça tenta focalizar mais um escândalo escancarado; e logo esquecido. Nas páginas dos jornais, sempre mais magros em teor: vítimas da nova eletrônica e informática. Lê aquilo quase rotineiro: corrupção, crime e fofocas de hiper-abastados. Um ou outro colunista revoltado.
Não dá em nada, a nação não lê. Fotos de aviões despencados, paraísos tropicais em 10 vezes, metade do papelório que folheia são anúncios de imóveis. Jornais como catálogos imobiliários ou virtuais lojas de automóveis. O destino.
Futuca pela mesa, quebra crêmecraquers empastelando-os com requeijão de pote vítreo e avião antigo na etiqueta, o mais caro. Digladia-se com o sempre insôsso mamão, a cada dia menor e amarelando no trajeto entre a colheita e o destino, encaixotado. Do pé sai cada vez menor e mais verde. Para a dieta das madames, o cocô garantido após a ingestão. Quase religioso: "sem-meu-mamãozinho-não-dá-cocozinho"... Amém.
Atende ligação do causídico, esse rotineiramente e novamente a informar em casos trabalhistas os juízes serem todos suspeitos de colaborar com o inimigo, parecendo coisas de Iraque. Poder perder a ação contra mais este terrorista, configurado no trabalhador demitido que vai à justiça ver se tira algum, para ir agüentando enquanto não arruma um trampo novo. Nem sempre justo nas reclamações, mas não é assim todos fazem? Arriscando jamais aposentar-se, comum acontecer entre aqueles a galgar o caminho do enfrentamento.
- "Faça acordo, Rafael, depois fodemos o desqualificado quando quiser se aposentar. Até hoje, por aqui, Rafael, nenhum desses que foi reclamar conseguiu se aposentar. Acordo sim, até perder a causa, no problem, mas aposentadoria: nem por cima de minha carcaça fedorenta...".
Era a realidade, não se aposentavam mesmo. Um papelzinho faltante não entregue e bau-bau... A vingança, por todos os lados, o país se lastreia nisto.
Da feira, fresquíssimas, trazem limas-da-Pérsia para o combate à azia incessante, fruto do muito escótiche consumido. Aplaca as dores d´alma, diz o vetusto sujeito, alertado pelo médico sobre o consumo. Desculpas de beberrão, ora. Corre-se à cozinha, o espremedor manual, com menos barulho, deglute o interior dos gordos cítricos, nas mãos da nova copeira-cozinheira. Ela lá dos distantes Piauís, chegada de pouco. Ingênua, ainda...
Leva o suco leitoso, bege, até o patrão. Este, vítima de certo descaso consigo, a afagar os ovos, distraído com a leitura, é alertado:
- "A limada, dotô!".
Olha o que ocorre, prospecta com olhar de águia o teor do alto e gelado copo e quando decide derramar na goela, a mocinha diz baixinho:
- "Eh, parece água-de-barreiro!"
A exclamação detona o lembrar de seu rústico começo, no interior do abrasador nordeste da grande nação. Aflora a lágrima, uma em cada canto de cada olho, vendo a mãe, esquálida, raspando a parede do buraco úmido, por minutos, a juntar meia latinha de água, para aplacar a sede; dele; e de irmãos. Um gesto da mais absoluta miséria, o raspar da lata colhendo orvalhos. Raspa, raspa, raspa. O gosto d´água com terra, o lamento da mãe chorando pelo "solis do diabio", a queimar e alourar seus cabelos empoeirados, tirar-lhes os ímpetos, fazê-los migrar.
O trabalho na cidade grande, o sucesso, a vingança contra a miséria, o esquecer da origem. Desanda por instantes em discretos cacos a lembrar-se, tristonho.
Na volta à cozinha, a mocinha comenta com a colega:
- "Bebeu todinho, mas me olhou de um jeito gozado depois que escorregou eu dizer parecer água-de-barreiro... "