Foto do Hermógenes

Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Com muito estilo

Lisboa, 7 de Março de 1992

Exmo. Senhor T. B.
Guena e Bussius Editores Ltda.

Prezado Senhor:

Em primeiro lugar, todas as desculpas que lhes devo, a si e a Euclides Neto. Em meu abono, poderei invocar os mil e um afazeres e quase outras tantas viagens subseqüentes à saída do meu último livro, mas, sendo certo que isso me ocupou o tempo e dispersou o espírito, não é menos certo que o atraso com que respondo ultrapassa todas as marcas, a começar pelas da boa educação.

Agora, a umas desculpas devo juntar outras. O livro do Euclides Neto, se sou bom juiz, é um bom livro, merecedor daqueles louvores que são a normal substância das ‘orelhas’, ou ‘badanas’, como aqui se diz, mas eu fiz jura, passados os meus tempos de editor, de nunca mais escrever textos desse género. Então, por saturação, agora porque, aberto o precedente, seria inevitável choverem-me de todos os lados pedidos semelhantes. Dir-me-á que não é isto justo nem razoável, uma vez que há quem tenha escrito ‘orelhas’ para os meus próprios livros, e neste, como em todos os casos, não deveria haver dois pesos e duas medidas. Assim é, e estou gratíssimo a quem o fez, mas, apesar disso, continuarei na minha: ‘badanas’ nunca.

Podia ter dado esta resposta logo que recebi a sua primeira carta, e assim pouparia expectativas que agora venho defraudar, mas a verdade é que durante este tempo andei a hesitar: escrevo, não escrevo até à decisão. Que não é a que desejariam, e disso fico a recriminar-me. Espero que Euclides Neto possa desculpar-me. Deu-me prazer lê-lo, pesar-me-ia que ficasse uma sombra entre nós.

Cordialmente, José Saramago.

Nos meus tempos de tentativas de edição, já abandonadas, na primeira investida com a reedição da obra Os Magros de Euclides Neto (1925-2000), que pessoalmente reputo o melhor livro regionalista da zona cacaueira, pedi a José Saramago redigisse a orelha.

Euclides Neto e Saramago haviam se conhecido em evento nas épocas de governo não-carlista naquela bela terra da Bahia, ambos eram notórios apreciadores das grandes causas sociais e a amizade selou-se.

Pensei que Saramago fizesse redações de orelhas com certa freqüência, portanto arrisquei. Um bom amigo na velha terrinha, o discreto poeta António André, após algumas pesquisas conseguiu-me o endereço do grande escritor e fiz assim a solicitação.

Como nada ocorria, algum tempo adiante e espera de poder enviar o livro à impressão, insisti com um telefonema e outra carta, expressa; mas não passei de uma cordialíssima atendente que jurou insistir junto ao mestre.

E qual não foi nosso encanto, mesmo diante da negativa, de receber esta peça literária em forma de carta, em bela síntese negando, justificando e desculpando.

Outros escritores de porte, mais adiante solicitados a abrir um tantinho de seu espaço e redigir orelhas para nós, na maioria dos casos nem respondiam. Ou uma nota de secretária, como recebi do Jorge Amado, detonava um curto e grosso "recebido, agradecemos, entraremos em contato." Jamais o fizeram.

Talvez seja o comum, são assim os escritores famosos.

Mas José Saramago não era.

A negativa que melhor aceitei em toda minha vida...

Comentários (clique para comentar)

LUDWIG VON ALBARUS - 29/06/2010 (12:06)

Jairo Gerbase - 23/06/2010 (22:06)

Foram duas grandes perdas com a diferença de 10 anos eles tinham algo em comum boa lembrança este prefácio