A vingança do vigilante rodoviário
Mês a mês, por já 35 anos, nos encontramos para um chope. Colegas de escola, alguns desde o jardim de infância, amizades indeléveis que ficaram. Confiamos uns nos outros como velhos irmãos, nos solidarizamos nos apertos; nos respeitamos, somos assim.
O curioso nome da escola, Porto Seguro, talvez transmute nessa amizade e desejo de nos reunirmos, num ato de ancoragem segura, em local sem intempéries de fundo a garrar, como dizem os marujos.
O ancoradouro das nossas almas: as velhas e seguras amizades.
A cada reencontro histórias contadas com primor, as piadas bem apanhadas, as revoltas com os rumos políticos da nação, as brincadeiras e o prazer embalado por comida e algum chope, nos faz por momentos reviver infância e adolescência. Saudosismo necessário. Quem não necessita às vezes chamar aquele senhor sizudo, de meia idade e seus óculos meia-taça, de “panaca”, “veado” ou algo assim? E este, ao invés de levá-lo à corte para processá-lo por ofensas, responde no mesmo tom, brincando.
Bons encontros, valem a pena.
Com seu lado curioso. O ponto de reuniões normal, boteco caprichado de um dos colegas, está em reformas. Optamos este mês por restaurante diziam ser o melhor de comida teuto-brasileira nesta Paulicéia Desvairada. Fica em certo centro católico, obra do Pe. Kolping, que de educação-física à natação e dança, passa por ecologia, obras sociais, etc. O lugar é aprazível, um pouco quente e as flores de plástico são, com mil perdões, de matar. A comida era decente no passado e os preços razoáveis.
Os tempos mudaram. Dobraram os preços, a comida está horrenda e o meu adorado arenque com creme-de-leite eram vis sardinhas em salmoura malfeita, porém vendidas pelo preço do peixe nórdico. Vazio o local, se denomina algo como “Cozinha de Mestre”. Prometemos repensar novo encontro por lá.
Porém lembrei-me que o proprietário, e sua irmã, eram pessoas ligadas à nossa escola. Tinham nome de ferramentas, recordava, de fresar aços. O cavalheiro, professor ou administrador, era de certa rudeza com nós alunos.
Ontem o vi, velhinho, debruçado sobre o caixa do restaurante, contabilizando os rendimentos do dia, quando de estalo lembrei-me de seu apelido: “Vigilante Rodoviário”. Nos intervalos das aulas percorria o colégio na Praça Roosevelt e policiava, com puxões de orelha, os “infratores”. Sua especial preocupação era os alunos do colegial, liberados a sair os do último ano para o lanche externo, às vezes seguiam acompanhados por espertos dos outros anos inferiores e na filtragem desse senhor, havia sempre a pergunta: de-que-ano-é?
Os engraçadinhos fechavam o indicador e o polegar em círculo e os três dedos restantes apresentavam como “terceiro científico”, Sr. Ferramenta. Gesto obsceno, hoje meio em desuso. Todavia o tal Vigilante tinha que aceitar a indicação, não havia “documentos” comprobatórios.
Pelo visto jamais se esqueceu das ofensas e talvez ontem, ao nos ver por lá, resolveu vingar-se tardiamente. Chope caro e comida cara, bem ruim.
Portanto cuidado com os gestos, mesmo 35 anos após pode haver retaliações.