Dormindo em pé
Por Carlos Eugênio Junqueira Ayres, de Salvador
Quando eu era adolescente, sem maiores compromissos com o mundo, costumava dormir doze, quatorze horas por dia. Inconformado, meu pai me acordava e me censurava, sabiamente:
— A vida está passando lá fora e você está perdendo o espetáculo!
Eu abria o olho, dava uma olhada no espetáculo e voltava para o travesseiro. Naquela época, é bom que se diga, eu praticava esporte nas minhas poucas horas vagas e traçava dois pratos de comida no almoço e no jantar. Não tomava café da manhã porque já levantava ao meio-dia.
Mais tarde, homem feito e com responsabilidades de pai de família, as horas disponíveis para dormir reduziram-se a menos de um quarto das 24 horas do dia.
Quanto mais velho vai-se ficando, diz a medicina, menos tempo de sono o organismo da gente precisa para se restabelecer. Desconfio que essa redução não é um fenômeno de origem fisiológica, e sim decorrente das preocupações que se vai adquirindo e acumulando pela vida afora. Com o trabalho, os filhos, os compromissos sociais, as contas de fim de mês etc.
Alguns anos atrás, eu trabalhava fora da cidade e estava sem carro. Vivia dormindo nos ônibus, na ida e na volta. Minha mulher se indignava.
— Quem dorme em ônibus é pobre, é peão de obra. Que vergonha!
Eu não dava atenção a essas manifestações de quem só andava de carro. Enquanto encontrasse o ombro do vizinho para encostar a cabeça, eu ia cochilando na estrada. Por sinal, nessas horas é que eu via a solidariedade humana. A gente revezava a cada dez minutos.
Ninguém sabe, só pobre e eu, que era pobre com cara de rico, o que é você se sacolejar todos os dias por uma hora, uma hora e meia, em um ônibus entupido de gente que pára de cem em cem metros para renovar o estoque. E me dava por satisfeito quando encontrava um lugar para sentar. Na maioria das vezes, dormia em pé, mesmo, apoiado no companheiro ao lado. Em mulher eu não encostava, poderia parecer sacanagem.
Aliás, venho dormindo em pé muito amiúde nos últimos tempos. Trabalho durante a noite, como guarda noturno, vigia de farol, gari, revisor de jornal, por aí. Mas acordo cedo com a movimentação de minha mulher saindo para o trabalho. Então, passo o dia caindo pelas tabelas.
Quando estou dirigindo eu não durmo. Só duas vezes: uma, quando um poste me acordou, e outra, parado na sinaleira, com os carros buzinando atrás de mim. Em fila de banco eu chego a sonhar. Na empresa, dou cada cochilo elegante em frente ao computador que o pessoal pensa que estou prestando uma atenção enorme ao texto em minha frente.
Outro dia, fui almoçar em um restaurante a quilo. Uma senhora à minha frente demorou tanto em escolher o que iria se servir que dormi na fila com o prato vazio na mão. Quando acordei, não encontrei mais nada. Tinham passado na minha frente e comido tudo. E ainda me cobraram a solitária azeitona preta que me coube.
Ando muito preocupado com o meu futuro. Quanto mais velho vou ficando mais em pé vou dormindo. Uma madrugada dessas, ao voltar do trabalho, fui acordado por um vizinho quando estava parado frente à porta do apartamento, segurando a chave no buraco da fechadura.
Outro dia assisti a um vídeo na internet onde uma velhinha atravessava na sinaleira e de repente parou no meio da faixa de pedestres para dormir. Espero não chegar a esse extremo. De qualquer forma, de agora em diante vou ter que sair na rua com uma tabuleta pendurada no pescoço:
“Cuidado, sujeito a dormir em qualquer lugar”.