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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Procrastinação

Palavra feia, ruim de citar, difícil de soletrar. Significa empurrar com a barriga, deixar para depois, enrolar, não fazer, adiando. Um tanto misteriosa até, entretanto imagino algo fortemente ligado ao nosso inconsciente. A seu total comando, com certeza. Sou um pouco assim, existem nuâncias menos intensas, claro.

Tenho grandes amigos fortes procrastinadores, seus perfis são semelhantes: argumentam bem em defesa do ato de postergar, imediatamente culpam a outros pelos infortúnios e têm na ponta da língua a informação que, sim, vai resolver, só mais adiante.

Agora, agora, hm, não.

Muitos com os cursos incompletos, normalmente a graduação univesitária. Sem emprego, em média pequenos empresários ou comerciantes, porém sem ímpetos. A culparem os pais, sempre, por não terem insistido ou cobrado isso ou aquilo.

Os parceiros ou parceiras correm na mesma linha, sem maiores interesses. Ou andam sós ou têm parceiras e parceiros semelhantes, pequena observação faço.

Sonham com estabilidade, riqueza, emprego público, amigos protetores e parentes generosos. Inconformados não ter ocorrido ainda o “pulo do gato”. Recordam com insistência do conforto quando mantidos pelos pais, das benesses de governos autoritários, de corrupção consentida, de pequenas sabedorias vantajosas e de grandes negócios, perdidos normalmente. Meu sogro dizia merecerem toda a riqueza, injusto não a terem, pois eram revoltados e esta revolta lhes daria nos rins, na alma. E me alertou que todos são contumazes devedores.

A procrastinação surge hoje com certa dolorosa freqüência entre os jovens, adolescentes até. Mais comum entre os filhos de pais separados, pelo me consta. Na nossa classe média paulistana hoje já os há mais que de pais casados, portanto não necessariamente ligado a isto. Não saberia relacionar o que motiva ao não-fazer, talvez duro recado aos pais, algo como "fiquem-juntos-e-se-entendam-ou-nada-faço"?

La grève des enfants?

Há casos extremos como moça faz cursinho para o vestibular de medicina pelo oitavo ano, sempre com aproveitamento péssimo. Pais separados. Não estuda, apenas vai cotidianamente ao preparatório, velhona das turmas e sonha com brilhante carreira médica. Ano após ano.

Casos mais leves são aqueles fazem centenas de cursos. Abandonam alguns, formam-se em outros, todavia não se interessam. E partem para novas experiências, bancados pelos pacientes e protetores pais. Uma jovem amiga abandonou o curso de jornalismo, formou-se em história, desinteressada foi cuidar da revisão de livros, fez pós-graduação no exterior, voltou, abandonou tudo àquilo relacionado, novamente para partir a curso de línguas no exterior.

Porém não se explica a origem, talvez o onírico em imaginar algo benéfico seja mais agradável (e menos arriscado) que ir à sua real busca? Ou seria a educação falha lastreada em dizeres de pais hiper-protetores, "deixe-meu-filho,-resolvo-para-si" e "não faça isto, é demorado ou perigoso"?

Às vezes com bloqueios duros, lembro do caso de mãe impediu o excelente emprego da filha, uma química formada, em grande laboratório, pois “era muito longe para ela” e, mais adiante, a moça fugindo desta tutela, apesar de procrastinar da mesma forma, procurou e conseguiu emprego como comissária de vôo. E abandonou logo em seguida pela advertência da mãe "filha-minha-não-serve-comidinhas-em-avião". Refugiou-se num casamento depois desfeito, não teve filhos, jamais exerceu a profissão.

Alguns pais se desesperam, inconscientes da origem do comportamento, a hiper-proteção que reputo parte do problema. Procuram resolver por caras terapias, subsídios constantes, nepotismo nos órgãos públicos, mais cursos e cursos, longas viagens e casamentos úteis que resolvam. São os métodos. Entre a população menos afluente os métodos são mais rústicos, pouco pode-se fazer para evitar os males da procrastinação. Aí escorrega-se para o alcoolismo, drogas e o crime.

Todos procrastinamos, eu pessoalmente tenho assuntos não resolvo há anos. Odeio ir a médicos e seus chatos exames, há 16 anos não visito como prometido uns parentes na Alemanha, o tal regime para a perda mais potente de peso fica para a semana que vem faz décadas, o cigarro não largo e o desejado curso de russo nunca iniciei...

Somos assim.

Encontro dos procrastinadores anônimos: na placa diz "encontro de hoje adiado, para ser remarcado mais adiante"...

Comentários (clique para comentar)

Thomas - 12/03/2010 (08:03)

To be or not to be, that is the question... Concordo consigo, é da mente. To do é do cotidiano, da pedagogia, sem dúvida. De qualquer sorte, indo pela questão da dúvida, o not to be é, talvez, mais confortável. Como diz a placa de trânsito: "Na dúvida, não ultrapasse". Mais seguro... dizem.

Jairo Gerbase - 11/03/2010 (17:03)

To do or not to do se coloca no nivel objetivo; to be or not to be no subjetivo; um está no nivel do fazer outro do ser; um é estrutural outro é contingente; um é pedagogia outro psicologia...

thomas - 08/03/2010 (14:03)

Zweifel, a dúvida. A insegurança pela dúvida transmuta em não-fazer, postergar? Será? Mistérios da alma, mas frequente o ato, nos dia de hoje. É o que se percebe. E alguns até apostam, diante das evidências: "Aquele, não vai fazer nunca...". Ontem conheci outra "vítima". Fez educação física, 30 anos, deve ter estudado por 11-12 anos, mas sem a licenciatura (imaginaria eu ser essencial para a profissão...). "Mais adiante vou ver isto."

- 08/03/2010 (14:03)

"To do or not to do" seria mais apropriado... Como na ciência exata, a da alma procura sempre em algum lente a virtude de todo ensinamento, mesmo na fantasia de Shakespeare.

Jairo Gerbase - 08/03/2010 (11:03)

a causa está na Zweifel; escrevi algo sobre este sintoma que deveras é grave; começa com Hamlet: To be or not to be.

- 05/03/2010 (21:03)