Carta a meus pais
Por Rubens Jardim
Tenho, sinto e vivo saudades maravilhosas de vocês. A cada momento -- fácil ou difícil, belo ou feio, agradável ou desagradável -- volto a vocês. E esse voltar é muito parecido com meu voltar às Igrejas antigas -- e aos símbolos mais permanentes que permearam a minha vida de criança. Deixando marcas e ressoando preces pela vida afora.
Tenho certeza, e ela vai ficando cada vez mais clara e serena, de que ser filho de quem sou me deu a oportunidade de certo exercício de liberdade -- repudiar ou concordar -- aprender sempre, procurar errar menos, escolher com mais critério e estar sempre disposto a enfrentar o difícil caminho da beleza, solidariedade e verdade.
Sou grato, por exemplo, em estar simplesmente vivo, cheio de carências e imperfeições, pertencer a esse continente e a geografia humana. Laços que, e até os desdobramentos deles, me prendem ao chão da humanidade. E ao mesmo tempo libertam signos e significações muito especiais e específicas. Caso da palavra exuperyana "cativar", de tantos significados e lembranças.
E desta monumental Catedral de Colônia.
Não podem imaginar o que foi para mim estar diante dela e eu mesmo, recapturado na infância. Penso essa emoção só poderá ser transmitida diante de um frasco de perfume, que eu vi, e gravei, ainda muito pequeno. Mas isso é indizível e indivisível! Talvez seja partilhável em plano mais profundo e abrangente -- entretanto só realizável por essas raras pessoas escolhidas e enraizadas no viver e conviver da gente.
De certa forma, por conjunturas sempre inexplicáveis, recebi o legado da vida através de vocês. Não para ser do jeito sou: cheio de precariedades e incompletudes. Porém do jeito vocês gostariam eu fosse: invulnerável à dor e cheio de felicidade. Hoje, após meus 48 anos, posso confessar o sonho e o imaginário de vocês tem muito com aquilo fui, que sou e, provavelmente, aquilo serei.
Vocês me deram e doaram as primeiras percepções desse estar aqui. Foi junto de vocês que eu respirei pela primeira vez. Chorei pela primeira vez. O primeiro abraço e beijo vieram de vocês. Como as primeiras palavras e alegrias do viver. Depois as primeiras alegrias do conhecer, viajar, amar. E é claro, as celebrações do conviver. Hoje, a minha resposta, amorosa, fraterna, é que estou apenas no caminho vocês abriram nessa longa travessia da vida.
Não sei, e acho que nunca saberei, mostrar ou demonstrar a minha gratidão e a minha alegria de ser o prolongamento e a continuação de tudo aquilo que vocês já viveram e nós já vivemos juntos.
Tento fazer isso com meus filhos. E não só com eles, em conformidade com aquilo me ensinaram e fazem, cristocentricamente, até hoje. É certo, há horas isso é muito difícil. Mas em boa parte do tempo não é complicado e é até mesmo muito simples; e natural. E como é bom sentir: elos fortes nos prendem à vida de pessoas amadas e nos enredam no chão único da humanidade. Sou réu confesso de muitos equívocos e erros. Mas cansei e hoje procuro, talvez com mais maturidade e fé, aparar as arestas da minha personalidade, arredondar as formas do meu ser, aceitar os planos e os espaços reservados às diferenças. Não tenho mais receitas prontas, princípios simplórios, chaves falsas que servem para qualquer porta.
Busco e intento compreender as razões e os modos de cada um de meus semelhantes. Ou dessemelhantes. Mas sou frágil e incompetente para tarefa tão árdua. Por isso abdiquei dos meus inconformismos infantis. Porém quero deixar claro não abandono a minha percepção de criança. Nem a minha inocência. Nem a minha revolta e a minha alegria, sempre viscerais e espontâneas.
Confio -- e espero continuar confiando -- na vida e no amor. E a demonstração mais clara disso é que estou aqui, de novo na Europa, vendo e vivendo junto da mulher e do filho, amados, nas mais inusitadas e estimulantes situações. Todas elas emocionantes e convergentes sob a prismática idéia da revelação. São depuramentos experimentais da nossa própria natureza e dos nossos próprios --ou impróprios -- valores, posto à prova em incontáveis situações e momentos. O célebre Concerto para Violino do Tchaikovsky, por exemplo, está irremediavelmente ligado à minha infância e ao papai. E vocês não podem imaginar o que eu senti ao ouví-lo por esses caminhos encantatórios da Áustria e da República Tcheca.
Compramos uma fita em Praga e a gravação é, realmente, soberba, magnífica. Coisa que não é novidade nenhuma, pois no Leste europeu o time de cordas é sempre de primeira. E nem é preciso dizer como isso me fez voltar no tempo. Lembrei do Ruggero Ricci, da capa do disco e do papai, é claro, entusiasmado e emocionado com as frases melódicas e com aquele discurso sonoro romântico e comovente. E não dá para deixar de chorar! De contentamento! Felicidade! E saudade! Que impulsos misteriosos são esses que ecoam em minha alma aberta e encantada? O que o papai sentia ouvindo essa música na sala de casa, na Cristiano Viana, não pode ser muito diferente do que estou sentindo agora, 40 anos depois.
Que momentos de comunhão são estes que nos recolocam em nossos verdadeiros lugares, uns diante dos outros, uns ao lado dos outros, unidos por esse laço invisível das origens? Emoções vividas pelo papai não tiveram e não estão tendo continuidade em mim, em espirais cíclicas?
Gestos e palavras não ficaram dentro de mim, ecoando e reverberando até nessa música? Acho que viver é muito isso: esse reencontro forte e pleno com a paisagem humana de cada um de nós.
Beijos amorosos do filho.
Rubens Jardim, 61 anos, jornalista e poeta.
“Rubens Jardim solucionou, ao seu modo, e de maneira criativa uma série de impasses vividos pela poesia nas últimas décadas... Pode-se dizer que ele faz uma síntese do que seria o poema-cartaz, o hai-kai, o poema-piada, o caligrama, a publicidade e o poema convencional. Pode tanto produzir um poema com o mínimo de palavras ou letras, como um magnífico soneto. Pode compor um poema voltado para problemas sociais ou para a repressão política, ou pode dedicar-se à sua infância e a temas subjetivamente familiares. E tudo com a desenvoltura de quem sabe o que está fazendo..."
Affonso Romano de Sant’Anna
(Poeta e crítico)