Alma brasilis
Existe isto? As regiões do planeta criam ambientes para que determinadas movimentações do, digamos, espírito sejam compartilhadas, comunitárias. Talvez daí decorrer o que se diz ser “coisa de brasileiro”, por exemplo.
Em nosso caso, pessoas vivendo nesta porção específica da América Latina, a “coisa nossa” tem valor e importância. Brincamos com o tema, mas nos é também atribuída certa parcialidade efusiva, quando contestados sobre o exagero, se notado. É a alma brasilis, nosso modo de ser.
Uma jovem amiga da esposa, em viagem à Índia, a fazer um curso de danças por lá, nos reportou de forma intrigada sobre a diferença entre as aulas. Disse ela a rigidez ser maior, por lá. Não haver tolerância exagerada com quem não acompanha, nada de agrados e muito profissionalismo (diga-se cobrança) nos resultados. Torções, distensões, temores, inabilidade e outros são perdoados por aqui, com palavras de manso alento “você-vai-conseguir-descansa-um-pouco”. Nas terras de Ganesh a rigidez é maior, importa o resultado.
Observando nossa TV, um amigo alemão ficava encantado com o imediato perdão aos assaltantes, às vezes homicida. Algo como “coitado”, sem opção; a vítima “também procurou, como é que anda vestida assim...”. A ponto de no crime comum sempre alegar o bandido que “atirou porque pensou que a vítima ia reagir”. Atenuou sua alegada violência, passando a culpa da agressão à vitima.
Nisso a alma brasileira a mim, apesar de nascido aqui, é misteriosa.
Jamais entendi a confusa empatia com o agente violento, sempre culpando a vítima. “Também, pô, como é que o babaca anda com um relojão daqueles, chamô pro assalto, meu!”. Incluindo-se as confusas relações de trabalho no país, onde em 100 processos trabalhistas, apesar de jamais se divulgar qualquer estatística sobre o assunto, em pelo menos 95 há vitória do reclamante, como denominam o trabalhador alegando ter sido injustiçado.
A imperícia, quando alguém acerta com o martelo o próprio dedo, acaba virando discussão de alto fôro e impingindo, sempre, ao empregador “falta de treinamento adequado, iluminação deficiente, etc.”. O tal empregador, mesmo tendo tomado todas as precauções, acreditando na habilidade pela profissão informada do prestador de serviço, acaba sendo o malvado, que não ensinou direito a segurar o martelo.
Da alma brasilis decorre frase de um advogado que conheci, cuja máxima ideológica se resumia à : “O trabalhador está sempre certo. Mesmo estando errado, estará certo pelo passado de injustiças que sofreu.” E paguem os inocentes de hoje pelo passado, eu retrucava. Alertava: um dia entenderá.
É difícil, por enquanto a luz não me alumiou...
E se orgulhava de jamais ter advogado contra qualquer trabalhador. Dogma rígido, por mais flagrante erradas e injustas fossem as atitudes. Admirável.
Decorre da alma brasilis a procura da apresentação bela, não acredito que exista outro país com o culto ao corpo tão exacerbado como por cá. Os padrões de “gostosice” para a mulher brasileira são rígidos, potentes e consuetudinários. E mantidos a ferro e fogo, contra a inexorável ação do tempo. São senhoras de 80 anos preocupadas com o que os gringos chamam de panty-line, a marca da calcinha por baixo dos trajes, discretamente surgindo e desenhando o traseiro. Algumas a preencherem com sutis almofadinhas a chulada retaguarda, vítima do tempo. A sempre sair com batom, a ser o maior mercado de cosméticos após os EUA.
Motoristas brutais, violentíssimos. Nós brasileiros não temos jamais a incumbência de simplesmente usar o veículo como algo que com segurança e tranqüilidade leve a nós ou passageiros de A a B. 40.000 mortos por ano no trânsito, 10 vezes os mortos alemães, com o mesmo número de automóveis, 40.000.000. Fico assustado quando me vejo inconsciente odiando o camarada à frente por ter me “fechado”, ultrapassando pela contra-mão e solfejo algo como: “calma, é apenas trânsito”. Muitos porém partem para a ofensiva, "re-fechando" quem iniciou, esticando o dedo do meio e não raro sair no tapa, ou pior: no tiro.
A alma brasilis porém cria o melhor atendimento médico do mundo, com certeza, não só pelos médicos e suas habilidades mas pelo humanismo e bondade de enfermeiros e enfermeiras. Na rede privada, claro. A pública é o lado sombrio da alma, tenho medo um dia necessitar de seus préstimos... Somos centros imbatíveis de excelência odontológica, europeus sabem que quem cuida dos dentes sem querer milhões em compensações, são os dentistas brasileiros. Americanos voando a Manaus para arrumar o piano.
Enfim, complexo resumir como somos assim e mais, porque somos assim, o mistério. Leio neste momento um catatau de Gilberto Freyre sobre a origem de tudo isto. Perde-se, apesar de volumosa a obra (Sobrados e Mucambos, 1936), analisando nosso espectro de formação apenas pelo lado, digamos, fino, nobre, do senhor de engenho e seus filhos bem-educados. Mas mostra um pouco da nossa alma. O livro faz pensar.