Utopia realizada
Por Euclides Neto, de Ipiaú.*
Não pertencia às ordens religiosas que ficam no silêncio, pés descalços, ciliciando-se, na solidão dos conventos misteriosos. Viveu lutando, até contra a morte, no meio da rua, nos gabinetes, onde houvesse alguém gemendo ou quem se dispusesse a doar as sobras. Sua humildade, olhos em contrição, palavras balbuciadas como as das crianças famintas, face voltada para a terra em postura de quem assistia à elevação da hóstia eram a sublimação da própria vida. O seu grande enigma: entender como um corpo tão mirrado encastoava alma de tanto esplendor.
Mas ali morava uma mulher de têmpera, capaz de transformar as coisas materiais (dólares, cruzeiros, marcos, dádivas outras) em pura espiritualidade. Empresária destemida. Política hábil e sutil. Conhecedora profunda da intenção dos que a procuravam, fazendo-a, às vezes, instrumento de interesses eleitorais.
Administrava tudo isso com admirável sabedoria. Não se comprometia com partidos, ideologias, personagens. No plano dos negócios, construiu e manteve soberbo patrimônio de prédios hospitalares, escolas, terrenos, equipamentos valiosíssimos, girando um capital de inchar a cobiça de banquelros, praticando, contudo, a mais alta filantropia.
Seu desprendimento era tal que preferia salvar a vida e a alma de um pobre a salvar-se, sem procurar saber se assim o fazendo, já estava salva.
Deu-se bem com todos os presidentes, governadores, deputados, que a visitavam em romaria penitente. Aproveitava-se, no melhor sentido, do exibicionismo demagógico deles, pousando em fotografias, sem pejo de transformar sua imagem em cachês para a obra pia. Não sei de alguém que tenha combinado melhor a vida espiritual com o pragmatismo de resultados, em favor dos desvalido, claro. Pasteur dizia que quando estava no laboratório não se lembrava do oratório. Tudo para a irmã de caridade era um oratório, sem esquecer o laboratório.
Nesse tempo de candidaturas, gostaríamos de perguntar (com receio de cometer sacrilégio): se fosse possível a utopia não seria este o perfil ideal de uma prefeita para Salvador? Capaz de amar ao próximo mais que a si mesma. E de arrancar dinheiro, insinuando-se docemente, impondo-se com firmeza, criada, pois administradora exemplar, orquestrando uma afinada ladainha de muitas vozes? Lider. Sem uma palavra de fel.
Não me digam que maculamos a imagem da querida religiosa. O bom trato com a coisa pública deveria ter, ao menos um pouco da sua prática de vida.
Pois Irmã Dulce foi um utopia política realizada.
* Do livro "Menino Traquino", 1994, Littera Editores, São Paulo, reunindo os melhores artigos até então de Euclides Neto.
Euclides Neto (1925-2000), escritor e advogado, secretário da reforma agrária no governo Waldir Pires, ex-prefeito de Ipiaú, caprinocultor e avô dos meus filhos...