´Stamos em pleno mar...
Nosso maior poema, tão pouco compreendido em seu significado. Tão pouco lido. Façam-no agora, leiam e entendam. E olhem à volta, percebam melhor como se formou o Brasil com sua pecha de país mais violento do mundo e a razão do atraso haitiano poder ser analisada, pela involuntária imigração sob coação e agressão.
'Stamos em pleno mar... Doudo no
espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele
correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os
astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as
ardentias,
— Constelações do líquido
tesouro...
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali
se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos,
sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o
oceano?...
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as
velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue
corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem? onde vai? Das naus
errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste
saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam
traço.
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir
deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o
firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que
música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto
ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados
pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela
acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta
selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela
proa,
E o vento, que nas cordas
assobia...
..........................................................
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que
foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a
esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
Albatroz! Albatroz! águia do
oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as
penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas
asas.
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho,
qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho
mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à
bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da
mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de
langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em
flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza
dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no
regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do
vulcão!
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no
mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na
Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando,
orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês —
predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do
porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia
criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses
cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite
clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as
plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!
...
III
Desce do espaço
imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar
humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu
aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas
figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que
horror!
IV
Era um sonho
dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o
brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de
açoite...
Legiões de homens negros como a
noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às
tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o
sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e
espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em
ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E
da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais
...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se
gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A
multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva
delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios
embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após
fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do
fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote,
marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
E ri-se a orquestra irônica, estridente. .
.
E da ronda fantástica a
serpente
Faz
doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras
voam!...
Gritos, ais, maldições, preces
ressoam!
E ri-se
Satanás!...
V
Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é
verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não
apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este
borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das
imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram
em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do
algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à
pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite
confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima,
audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra
esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens
nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres
mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes,
bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. .
.
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi
também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe
vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos
braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo
tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para
Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no
país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças
gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na
cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do
monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores...
adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano
de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos
só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que
cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na
cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que
roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao
leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas
d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado,
imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre
cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao
mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por
poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra
morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre
serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da
morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute...
Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós,
Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror
perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de
tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites!
tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
...
VI
Existe
um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e
cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto
impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é
esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa...
chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa
do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol
encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da
liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na
lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um
povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente
esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que
Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas
é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo
Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a
porta dos teus mares!