O lenço perfumado
Por Eduardo Kruschewski, de Feira de Santana
De repente, sentiu necessidade de abrir aquele velho guarda-roupa, prisão de lembranças, agora esquecido no quarto dos fundos da casa. Precisava de um documento antigo para fazer prova curricular na escola de música e o procurou por toda a casa, convencendo-se, por fim, de que só poderia estar ali. À falta do que fazer, a preencher o tempo, resolveu voltar a tocar piano.
Fora pianista amadora, os dedos correram teclados como do majestoso piano de cauda, orgulho da família, sempre tocado nos saraus organizados pelos pais. Naquela época, tudo era motivo de alegria. E nem mesmo a visita do vetusto afinador de pianos, sempre cheirando à bebida e meio trôpego, a incomodava, pois gostava de sentir o néctar harmonioso de teclas afinadas primorosamente com acordes de Bach, Beethoven e Lizst, que o homem, de mãos ágeis, derramava pela casa... E era uma novidade ver, nos dias de reuniões musicais, os convidados, todos meio apavonados, cheirando bem: as senhoras em vestidos esvoaçantes e finos tecidos; e os senhores, empertigados com roupas de linho engomado, sentados cuidadosamente para manter o vinco das calças. Tudo em perfeito estilo rococó!...
Abriu a porta do quarto e respirou o ar impregnado de aromas do passado, a mistura de mofo com lavanda e amaciante. Na penumbra, vislumbrou a boneca de pano e o bambolê, junto à bicicleta infantil. Brinquedos de Juliana, sua filha, que, zum, zum, passeava de bicicleta pelas calçadas do bairro e era exímia equilibrista do bambolê, levando-o da cintura ao pé, do pé à cabeça e ao braço, para aplausos de todos. A filha que fez a sua própria declaração de independência mal completou a maioridade, quando disse: “-Mãe, vou viajar por aí. Conhecer gente e lugares” – e, a seu modo decidido, jogou a mochila nas costas, saiu porta afora e nunca mais deu notícia. “- Ah, Juliana, onde você anda, minha filha? Girando o mundo como seu bambolê?” – pensou, com um travo de tristeza na garganta...
Quando escancarou a porta do móvel, foi como fenestrasse a história de sua vida. Lá estavam as relíquias de família, objetos da estima dos pais, que teimou em preservar porque contavam de coisas ficaram para trás. Tudo ali estava bem arrumado, sem um grão de poeira, como se guardados recentemente. Começou a retirar peça por peça para procurar o que queria.
Do meio das toalhas de tecedura artesanal que sua mãe bordara com carinho, algo escorregou para o chão indo parar embaixo do guarda-roupa. Tentou ver o que era, mas inutilmente. Sua visão era ruim embora ainda fosse dia. Contraiu os olhos, na tentativa de enxergar melhor, a catarata já avançada e os óculos das grossas lentes esquecidos sobre a cômoda da sala. Acendeu a lâmpada do quarto, ajoelhou-se com dificuldade e tateou até os dedos tocarem em algo macio. Com cuidado, evitou que a peça de pano se sujasse na poeira acumulada na parte inferior do mobiliário, trazendo para próximo da luz e aproximando do rosto algo que a fez disparar o coração: o seu lenço perfumado.
O lenço! A peça que estivera tantos anos na bolsa, com o qual enxugara suores nos dias quentes, limpara a boca tirando o excesso de batom e retivera lágrimas como as derramadas quando viu o namorado; de asa arriada pela oferecida da Marlene... O lenço sempre encharcado de perfume e que, quando abria a bolsa, inebriava o ambiente com seu olor único e irresistível. O lenço amarelecido pelo tempo, mas tão novo pela redescoberta... Nem fazia idéia ele estivera ali tão perto, durante tanto tempo, ao alcance das mãos, bastando abrir uma porta de guarda-roupas. Curiosamente, o belo lenço, agora tesouro inestimável, há pouco não era mais destas coisas guardamos e deixamos esquecidas. Lembra de versos da poeta, sua conhecida, que possuira lenço parecido:
“Há de se deixar espaço
- luzes, tochas acesas,
cortinas rendadas
tapetes,
jarro com flores,
- lenço perfumado –
e amores. (...)”
Aproxima a delicada peça das narinas e aspira, tentando recuperar as muitas fragrâncias por ali passaram. Sentando no chão, tomada de emoção, os olhos transbordantes fixos na urdidura do pequeno lenço de cambraia bordada, nem percebe as lembranças, as gostosas lembranças, começarem a ocupar cada um dos espaços do velho quarto de guardados. Perdida nas dobras das recordações, com o olhar rútilo e um sorriso brincando nos lábios, recupera a vaidade feminina que o lenço, com sua magia, lhe devolvera e se olha no espelho da alma, passando as mãos nos cabelos. Como num passe de mágica, o poeirento cubículo transmuda-se em salão de baile e desembarcando da carruagem do tempo, a mulher madura sente-se adolescente Cinderela, calçando imaginários sapatinhos de cristal...
Ah, o lenço!