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Espaço de reflexão Hermógenes de Castro e Mello

Leite de camelo

Por Bernardo Linhares

Qual seria a receita que a velha espanhola, Doña Pilar, escondia a sete chaves, e aqueles adultos saboreavam e comentavam?

Salvador Dali começava a perder a persistência da memória, mas a galega, firme na sua cantina, vestida de preto, não esquecia o xale e o seu amor perpetuado em dobro na mão esquerda. Tudo era surreal para o Quarto Filho. Acabara de chegar da praia com o pai e os irmãos.

Felizes, bebiam as gasosas da Fratelli Vita. Mas, o que tinha naquela bebida branca, leitosa, que todos provavam e diziam:

- Tem leite condensado, canela, cachaça com baunilha?

Tudo muito surreal para o menino que não parava de pensar por que o seu corpo crescia quando avistava uma mulher na praia. Enquanto isso a velha repetia:

- Porra! Caralho! O leite de camelo é segredo de família.

Segredo de uma família que aportou na Bahia, na década de 30, fugindo dos horrores da guerra civil espanhola, mas, o tempo era outro. A Taça do Mundo era nossa. A classe que mais gera emprego era feliz e o país o futuro crescia como nunca. Sem conhecer a receita do coquetel, todos gritavam:

- Viva a ditadura! Viva a ditadura do proletariado!

Doña Pilar, mais alto:

-Viva Franco! Arriba España!

Para a felicidade da senhora, a terra de Dali continuava governada pelo Generalíssimo Franco, caudilho que mesmo unindo, embalsamou a Espanha, fazendo-a perder quarenta anos, convencido que o tempo perdido era um tempo ganho. Porém, sem a pretensão de criar o Homem Novo, antes da morte, realizara a obra prima de fazer inveja até a um Picasso, trouxe de volta à Espanha uma Monarquia constitucional. O Quarto Filho não sabia que o século XX era a estação dos tiranos e, num mundo em guerra fria, o Brasil vivia um regime de exceção que em duas décadas mataria 352 pessoas. Durante as Diretas Já, a nonagenária espanhola ainda lúcida, lúcida para ver a Espanha brilhando, se despede da vida sem eternizar a receita do leite de camelo.

Hoje, vinte anos depois do fechamento da Cantina, no mesmo local, um jovem espanhol abre uma taberna especializada em tortillas, delícia galega, essencialmente à base de ovos e batatas. Na primeira vez que o Quarto Filho entrou na Tortillaria perguntou ao dono, Juan Carlos, se tinha leite de camelo, ele respondeu que na Espanha nunca existiu essa bebida.

O Quarto Filho virou poeta. A praia está cheia de mulheres. Fracassados econômicos são vitoriosos políticos e ninguém sabe a fórmula do leite de camelo. Tudo continua surreal... E ele ainda a pensar na receita, pede a conta. Juan Carlos, que já lhe tinha alguma afeição, responde:

- Poeta não paga e ainda ganha presente. Leve para você este manuscrito, encontrei atrás do forro da cozinha durante a reforma do prédio, não entendo porque as traças não destruíram:

Espanhola

Com tinta clara
Dali pintou
o seio de Gala.
Com tinta clara
Dali pintou
os seios de Gala.
Com tinta clara
Dali pintou o rosto de Gala.

O Quarto Filho sorriu e foi para a praia.

Hm! E a receita do leite de camelo, qual é?

Uma taperia, onde seria? Deu apetite.

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