Lascia ch´io pianga mia cruda sorte... *
Por Silvério Duque, de Feira de Santana.
Um dos episódios mais fascinantes e cruéis da história da música foi a existência dos castrati. A palavra, literalmente traduzida para “castrado” em português, designava os cantores que, demonstrando algum talento para o canto lírico, tinham seus testículos removidos para, desta forma, impedir as mudanças hormonais que tornam a voz mais grave. Sobre certo ponto de vista a Igreja teve grande culpa por esta prática, pois suas interdições equivocadas impediam as mulheres de cantar nas igrejas e nos coros.
O auge desta “prática artística” deu-se entre os períodos Barroco e Rococó, ou, para ser mais preciso, em fins do século XVII e primeira metade do XVIII. Aliás, foram os compositores do barroco os que mais exploraram a força e o lirismo dos castrati. Georg Friedrich Händel (1685-1759), por exemplo, tem árias escritas para os heróis de suas óperas exclusivamente para castrati, e, comumente, tanto personagens masculinos quanto femininos eram interpretados por eles: Cara sposa de Xerxes e Lascia ch’io pianga de Rinaldo são boas ilustrações para o que afirmo.
Supõe-se que mais de 4.000 eram castrados por ano durante todo o século XVIII. Na Itália era muito comum existir barbearias, em sua maioria napolitanas, que possuiam, à entrada, um dístico com a seguinte indicação "Qui si castrano ragazzi". Era de Nápoles, inclusive, de onde vinham a maioria dos castrati. Os meninos proviam das ruas ou de famílias pobres que viam na castração de seus filhos a única perspectiva para uma vida com dignidade. Entretanto, arrancar testículos não garatia o talento, muito menos o sucesso, e, muitos, não achando emprego, voltavam à rua, à miséria e, pior ainda, à prostituição.
Para os que prosperavam, e estes eram poucos, os estudos eram sérios e exigiam dos castrati dedicação sobre-humana. Há pouquíssimas gravações que mostram como era a voz de um castrato que combinava extenção, potência e versatilidade; um desses parcos registros está nas gravações, entre 1902 e 1904, feitas por Alessandro Moreschi (1858-1922), considerado o último de sua espécie, morto em 1922 e que, até 1913, atuou como solista do coro da Capela Cistina. Após muito analisarem suas gravações, vários especialistas chegaram à conclusão que no caso Moreschi se tratava de uma voz potente, porém medíocre e "destemperada," pelo fato ele não receber a educação musical dos grandes castrati do século XVIII, época em estavam no auge. Quando Moreschi iniciou sua carreira, o último dos famosos cantores castrados, Juan Bautista Stracciavelutti (1780-1861), mais conhecido como Vellutti, já havia falecido, há anos.
O caso mais lendário entre os castrati é o de Carlo Maria Broschi, mais conhecido como Farinelli. Segundo registros da época, sua extensão vocal abrangia do Lá2 até Ré6, como escreveu Johann Joachim Quantz (1697-1763):
"Farinelli tem uma voz de soprano ligeiro, completa, rica, luminosa e bem trabalhada, com uma extensão que abrange desde o Lá debaixo do Dó central a Ré três oitavas acima do Dó médio… Sua entonação é pura, seus vibratos maravilhosos, seu controle sobre sua respiração é extraordinário e sua garganta muito ágil, porque canta os intervalos mais amplos rapidamente e com a maior facilidade e firmeza. As passagens das obras e todo tipo de melismas não representam dificuldades para ele. Na invenção das ornamentações livres nos adágios é muito fértil."
O poder e a doçura da voz de Farinelli se perpetuariam por várias cortes que iam desde a de Luis XV, da França, a de Felipe V, da Espanha.
Quem quiser conferir um pouco do repertório dos castrati recomendo, primeiramente, algumas gravações de Alesssandro Moreschi, que podem ser conferidas, por exemplo neste link: Moreschi , mas os leitores deverão desculpar a precariedade de uma gravação com mais de 100 anos. Podem assistir ao filme Farinelli, Il Castrato (Bélgica/França/Itália, 1994) de Gèrard Courbiau, com Stefano Dionisi no papel principal: Farinelli, o filme; ou adquirir o novo disco, Sacrificium, da médio-soprano italiana Cecília Bartoli que, num trabalho estupendo de talento e pesquisa, revisita, em seu novo album, as principais obras escritas para os castrati: Cecilia Bartoli.
Em 1870, o Papa Leão XIII proibiria a castração para "fins artísticos" e, em 1878, baniria os castrati dos coros das igrejas... um gesto bastante humano (para não dizer o contrário) na tentativa de apagar centenas de anos de dor, frustração e humilhações.
* Algo como "Deixe-me chorar meu cruel infortúnio e desejar a liberdade..." de uma famosa peça de Händel.
"Lascia ch'io pianga mia cruda sorte,
E che sospiri la libertà!
E che sospiri,
e che sospiri la libertà!
Lascia ch'io pianga
mia cruda sorte,
E che sospiri la libertà"
Edição: Th. Bussius, 2009