Ébria eternidade... final
Por Julia Bussius, de Salvador, Bahia.
No consultório do mordido doutor em Madureira, Raul se lamentava das perdas. De um dente canino, essencial, ao morder um pescoço duro de um gringo chapado que usava uma tala para algo na coluna. E do sumiço de Lola, que em brincadeira de noturnas incursões aéreas para dentro de um Rio-Brasília, onde voava pela cabine a assustar os passageiros, acabou presa ao fecharem-se as portas. Foi a Brasília contra a vontade, encantou-se com a quantidade de iguais no Congresso, sanguessugas notórios, e amaziou-se com tosco coronel nordestino, senador e que possuía notável estoque de jovens pescoçudos, além de fabuloso bar em sua mansão no lago. Vampiro, é claro. Todos eram.
O médico fez um remendo, recomendou um dentista paulista entendido e ouviu as lamúrias com paciência. Sugeriu um relaxante muscular, as contrações terríveis na metamorfose para morcego o exauriam.
Noitinha, a economizar o ônibus, resolveu investir num passeio alado até Copacabana.
Voava baixo, um tanto descuidado, esbarrou num pombo imundo decolado da feira de Piedade e cansado pousou na Ilha do Governador. Pendurou-se de cabeça para baixo no sombrio estacionamento dos carros de bombeiros, apenas desejava descansar. Repensava a vida, olhando pelo canto dos olhos o resoluto sono dos funcionários do local, em plantão.
Os anos haviam passado, beirava agora os 70 dos humanos. O emprego do Diário o mantinha modestamente, mas sem desafios. Os interesses minguavam, as casas noturnas com seus uísques vagabundos lhe davam náuseas.
Certa prima distante tentou contato, morava em Paranaguá, aposentada de um grande banco público, onde todos sabidamente eram, e são, vampiros, quase condição essencial para os concursados. Mas Raul não desejava mais contatos, sua vida humana o cansara. Naquele lento balançar ao vento no teto do galpão dos bombeiros, assustou-se com a sirene de um veículo que disparava a apagar algum incendiozinho, decolou meio destrambelhado, saiu por cima do modorrento aeroporto, cruzou pela plácida Paquetá e rumou em direção ao Pão de Açúcar para por baixo do bondinho deslizar até seu apartamento, desejando não ter fechado as janelas, para entrar sem topar com o chato porteiro, que insistia em oferecer-lhe bilhetes de loteria, fajutos.
O vôo era cansativo, pensou novamente em pegar um ônibus lá pelo Museu de Arte Moderna, mas tarde não circulava mais. Esforçou-se para subir a Urca, resvalar por baixo dos cabos e rumar para a praia da sua infância, quando ainda vendiam honestos mates gelados e não havia aquela horrorosa profusão de luzes de sódio amarelo.
Entretanto seus anos humanos e o tanto de sangue alcoolizado absorvido pediam alento do exercício pesado, pousou em uma destas barraquinhas de coco gelado, fechada àquela hora.
Prendeu-se para uma leve pausa entre outro morcegos, não vampirizantes, numa treliça, roliça. Momentos para retomar forças e voar ou andar até seu apartamento.
Não notou porém o Severino, de Ipiaú da Bahia, vigilante de algumas barracas da área. Que viu os bichinhos enfileirados, alguns ainda mascando uns restos de banana que acharam nas lixeiras e o exausto Raul, metamorfoseado.
Sabia o que deveria fazer, era expert no assunto, conhecia a arte desde a época em que resolvia este tipo de problema nas casas das “madamas” de sua cidade. Pegou de uma varetinha, fina, começou a vibrá-la, da direita para a esquerda, com zunido tal que os coitados, incluído o Raul, ficaram paralisados de terror.
Esta era a arte...
E, com terrível ímpeto num arco crescente, sem dó, deixou a vareta em alta velocidade rasgar com toda força contra a fileira de morcegos, abrindo-lhes com pontaria certeira os diminutos abdomens, as finas asas e destroçando o rosto, arrancando na fina estocada o outro canino do pobre Raul. A garrafa de pinga serviu para o final, o vigilante e ávido consumidor derramou o resto por cima dos agonizantes morcegos, a curioso observar o esvair da vida entre dor e torpor alcoólico.
A dor lancinante fizera Raul estatelar-se ao chão em meio aos morceguinhos estrebuchados. Tentou uma reversão da metamorfose, mas em meio ao crescente relaxar etílico pela caninha derramada resultou em terrível meia-boca, um híbrido cômico de homem-morcego.
Mas que não impressionou o vigilante de Ipiaú, também etilizado guardador noturno de barraca de coco. E este ainda solfejou algo como “baitola diferente retado”.
E resoluto pegou dois cocos secos de um canto, olhou para o desnorteado vampiro banguelo e com um tremendo estalo, bateu os dois contra as têmporas do rosto do Raul, gritando algo como, Gostou do telefone, chibungo?
Por último pegou de uma pá de lixo, destas de lâmina quadrada e foi dar a unção final na cabeça do delirante e cambaleante vampiro, mas voou a lâmina, o cabo de madeira escorregou para o peito de Raul, trespassou o coração e seguiu nosso herói para a ébria eternidade.
O ipiauense vendo o lento dissolver do estranho sujeito, limpou a mão ensangüentada e olhando para a varetinha no canto, entre os morcegos mortos, ainda detonou:
"Oxê, essa cariocada tá é ficano doidja. Eu vô é tumá u´azinha..."