Ébria eternidade... continua 2
Por Julia Bussius, de Salvador, Bahia.
Pareceia ter escutado tudo o que pensava. Sim, eu sou uma vampira. E, sim, nós podemos ler pensamentos, se quisermos. Mas não é tão simples. Algumas habilidades precisam ser desenvolvidas, não vêm instantaneamente. Se nunca exercitar, não poderá usufruir. Você, por exemplo, é jovem demais no assunto. Jovem para um vampiro.
Ele deu gole largo no uísque. Sentiu o líquido arder na garganta mas o efeito imediato foi bom. Eu o tenho observado, disse Lola. Como?, nunca a vira antes. Posso ser muito discreta. Você sempre vai atrás dos ébrios. Eles são menos ameaçadores e você aprecia o álcool no sangue. Raul tinha os olhos arregalados fixos na boca rubra de Lola. Eu entendo, ela continuou, eu também comecei desse modo. Quando aportei no Rio, era o único modo de conseguir um pouco de sangue. Para uma mulher, veja, é ainda mais complicado. No começo.
Você aportou no Rio?, perguntou Raul. Veio de navio? Mas quando foi isso? Ela sorriu sem mostrar os dentes. 1889. Vim num navio italiano, misturada entre os outro imigrantes. Fugi da Hungria depois de ter sido mordida, fui para Itália, encontrei pessoas parecidas e elas me convenceram a vir para a América. Acabei ficando. O lábio inferior de Raul pendia, os caninos que normalmente vampiros disfarçam, surgiram, potentes, algum excitamente em Lola detonavam... Você disse 1889, século dezenove? Lola confirmou. Mas, então a história de vida eterna...
Nós envelhecemos muito bem, disse Lola. E sorriu novamente com os lábios fechados. Você não acha? Não se sente jovial, aos 56? Eu não disse minha idade, Raul deixou escapar. Não precisa. Estava muito confuso. Nunca conheci ninguém como eu, disse. Por que você só apareceu agora? Bem, Raul, só o descobri há pouco tempo. Como disse, comecei a acompanhar seus movimentos à distância e percebi que era um de nós, claro. Mas como percebeu? Os sinais óbvios, disse Lola. Poucas palavras, observando todos no bar, escolhendo os mais embriagados, as vítimas. E nunca sai de casa antes das seis da tarde, nem volta depois do sol nascer. É simples assim.
Existem outros como nós aqui?, Raul queria saber. Como eu lhe disse, pouquíssimos. O Rio não é para vampiros. Mesmo a noite é calorosa demais. Poucos se dão bem aqui, como você e eu. São poucos os que conseguem se adaptar à boemia carioca, descontraída em excesso para o gosto vampiresco. No Brasil, os vampiros preferem São Paulo, mais cinzenta e mais soturna. Lá é mais fácil de mesclar. No Rio nós nos destacamos da multidão. Mas você e eu gostamos do torpor do álcool, do sangue quente temperado por ele...
Antes eu gostava do Rio de dia, disse Raul, com um tom de lamento. Depois não podia mais suportar o sol e as cores, as pessoas aparentemente saudáveis. Por isso encontrei refúgio aqui, entre os bêbados. Os cariocas da noite não costumam ser os mesmos do dia...Continua